Uma história quase real baseada em fatos surreais
author:: chicoary
source:: Uma história quase real baseada em fatos surreais
clipped:: 2023-02-19
published:: abril 21, 2018
Os nomes, apesar de reais no sentido de não serem nomes inventados, estão em correspondência com personagens reais, cujas sombras projetadas na parede do fundo da caverna, onde vivemos um mundo de aparências, são ficção. Pois também são sombras esses nomes, fantasmas nos assombrando em representação semiótica dos personagens. Que só podem nos assombrar. Alertamos, no entanto, para não levarem a sério o que se segue. Pois é pura historia inventada. Sem realidade fora da caverna, onde está a verdadeira realidade da qual somos sombras.
Mauro, às vezes Mouro por causa do tom de mate da sua pele, como Marx, frequentemente causa a impressão, em ouvidos um pouco moucos, de que não há o ‘u’, e também o ‘a’, mas um ‘o’, resultando em ouvirmos ‘Moro’. Muitamente pode-se ouvir ‘Muro’. Ou Mouro mesmo. Todas palavras muito razoáveis derivadas dessa mastigação, deglutição ou ruminação de letras que, descendo o esôfago ou ejetadas em náuseas, desandam numa filologia, ou quase uma fisiologia, tresloucada. O que resulta em trocadilhos impagáveis para alguns e imbecis para outros tal como o ‘Moro com ele’ para expressar um convívio conjugal. Ou ‘Moro neles’, podendo ter variada interpretação. Pode ser uma ameaça velada, brandida contra aqueles que podem ser alcançados pela sanha justiceira do Mauro. Ou também a declaração ‘Moro com eles’, começada com uma conjugação de um verbo, atestando uma multiplicidade de Mauros por sua consorte. Ora justiceiro, ora amante, ora cônjuge, ora religioso, ora carola, ora santo, ora apenas beato, ora um energúmeno falando em ‘línguas’, principalmente em Harvard onde demônios o obrigam a contar corleonescas estórias. Mauro gostava muito de Harvard. E também de falar ‘Massachusetts’. Não o conseguia com perfeição. Mas era uma palavra de pronúncia difícil e, ele, mesmo a pronunciando um tanto como ‘massaxutsis’, ou o que valha, não escutava a reverberação do seu descalabro fonético praticado com a palavra e, assim, não percebia que a busca pelo triunfo ao pronunciar palavra tão traiçoeira tinha efeito contrário ao que pretendia.
Mauro detestava que sua pele lembrasse Marx. Que às vezes ele pronunciava Max. Como se ao escapar de pronunciar o erre também escapasse dos vaticínios do Mouro. Salvava-o de mais comparações, que considerava esdrúxulas, ser imberbe. Adoraria manejar com destreza navalhas próximo ao próprio pescoço durante o barbear impossível, mas imaginário. Sempre pensando em alheios pescoços onde poderia executar sentenças justiceiras. Onde a navalha, tal qual a humanitária invenção do Sr. Guilhotin, deceparia os incômodos. Estremecia ao lembrar o destino mesmo do Guilhotin. E sabiamente ruminava que não se devia dar-se a inventar coisas perigosas que pudessem imitar um boomerang.
Esta pequena estória, de difícil continuação, dada a escassez de grandeza do personagem, é sobre a pequenez. E não poderia se estender muito pois a pequenez é como um buraco, onde tudo é falta. E foi inspirada em um começo que também se esvaiu por motivos similares e do qual falaremos no final. Ou porque não há como perder tempo com certas coisas. Apesar de sermos obrigados a tratar as coisas do Mauro diuturnamente por causa da sua insistência em querer a ribalta, mesmo sem merecê-la, um inescapável destino, sempre se pode tirar algum divertimento com isso. E alguns tiram. Mauro, contrariamemte a Schopenhauer, sempre preferiu a fama à honra.
Nos tempos de Nietzsche a fisiognomia tinha algum prestígio. Nietzsche a invocou para falar do feio Sócrates. E de como a sua feiúra era reveladora de uma má disposição. Que saia pelos poros e patas da Mosca de Atenas na forma do idealismo e do dualismo que acabaram conformando a civilização. Para Nietzsche, talvez, uma mosca varejeira. A fisiognomia hoje é considerada uma pseudo-ciência. Talvez por medo de lombrosianas consequências. Os gregos acabaram prescrevendo o banimento ou a cicuta para o Sócrates, considerado pelos atenienses o corrompedor da juventude. Mas voltando ao Mauro e à fisiognomia notamos que tinha uma testa que aparentava-se pequena. Seu cabelo parecia, no topo da cabeça, derramar-se para a fronde em declive a estreitar o espaço para a sua testa. Isto não podia deixar de dar a impressão de uma estreiteza que devia contaminar o cérebro e, se não, a alma mesma. Seu olhar negro, como um poço fundo do qual não se pode ver se há alguma coisa, talvez uma moça nua, não sabemos, era secundado por um vozinha que parecia um alfinete, saindo entre seus lábios finos que invocam a crueldade, alfinete a espicaçar e espicaçar, como uma verruma, a paciência do interlocutor. E mesmo a sua paz. Despertava ímpetos homicidas misturados com desesperos suicidas. Ouví-lo era como rolar uma grande pedra montanha acima só para vê-la rolar de novo no precipício. Num eterno retorno do mesmo engendrado por um demônio maligno que usurpou o lugar do, possivelmente benfazejo, diabo de Zaratustra.
E assim Mauro vai espalhando, empertigado para disfarçar a sua vida de escôncio, e impingindo a todos uma importância que não tem, nunca teve e nunca terá através das vias mais tortas que conseguir. Colocando-se numa posição que causa enorme dificuldade para uma esquiva reina absoluto e com absolutismo desde uma posição privilegiada. E tem muitos seguidores. Mas tem muitos contrários a seguí-lo. Se acha imparcial embora siga ideias parciais e parcelares, incompletas mesmo, inconsistentes até. Mas diz que não vem ao caso. Com ares de Luis XIV, ao afirmar que o Estado era ele, Mauro também é assim dado a aristocratices com os seus ‘não vem ao caso’ e se considera bem centrado, embora outros o reputem como um tanto autista. É sua ilusão de segurança num mundo movediço ao qual nunca se adaptou. Seus desafetos falam o diabo dele. Mas ele segue como se ladrassem cães a uma caravana. Impoluto de um auto-outorgado alvejamento. Somente sua pele mate o contraria por não poder representar a contento sua brancura interior. Chamam-no de ‘cisco’, um instrumento para a irritação, que pode ser eliminado com algum cuidado e bastante colírio. Mauro leva a sério a redundância das perguntas. Quando lhe respondem que não estiveram em algum lugar ele, imediatamente, pergunta: ‘E choveu lá?’. Gosta de escutar conversas alheias. Adora ‘a vida dos outros’. Pensa assim entrar numa esfera gnóstica onisciente que o faça consumidor de um prazer vicário e prevalente. Diz que faz parte do seu métier. Mas maneja tão canhestramente suas prerrogativas que há que se duvidar.
Falar de Mauro é falar de ninguém. É antes falar de um tipo. Um tipo psicológico. Os desavisados podem entender mal ou erradamente. Por exemplo, quando Nietzsche fala da mulher atrai acusações de misoginia quando queria apenas tipificar o ‘fraco’ usando a mulher historicamente e conceitualmente constituída numa sociedade patriarcal como um tipo. Tal como um mamífero feito toupeira para não enfrentar os dinossauros donos do mundo numa certa época. Esconder nos buracos a sua fraqueza. Dissimular a sua presença. Muitas vezes numa perfídia necessária à sobrevivência de um fraco. É assim que falar de Mauro é falar de um tipo. Falar de todos os Mauros ao mesmo tempo e não falar de ninguém especificamente.
Encerramos com a eufemística, não no nosso caso, frase: ‘Qualquer semelhança com fatos e personagens reais são pura coincidência’. E apontamos como nosso precursor e inspirador o artigo Baseado em fatos reais [1], que também se esvaiu por culpa da pequenez (Veja o texto abaixo).
Mauro, o juiz que tortura a justiça. Por Luís Felipe MIguel
Com um surto de inspiração, comecei a escrever um romance. Uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais, com personagens, situações e outros elementos adaptados para efeito dramático, como dizem por aí. Escrevi a seguinte cena:
“O juiz afrouxou o nó da gravata preta e pendurou o terno preto nas costas da cadeira. Chegava em casa cansado. O trabalho era sempre exaustivo: a Constituição não é um livro muito grosso, mas ainda assim é preciso força para rasgá-la, dia após dia. Passou pela cozinha gourmet em que servira bons vinhos a seu amigo, o popular filósofo Kalvo, e olhou para a mesinha com o telefone, que os brasileiros todos conheciam das fotos que sua esposa divulgava na sua página de Facebook, ‘Mauro com ele’. O sinal de novo recado piscava. O juiz suou frio – podiam ser novas instruções vindas de seus superiores nos Estados Unidos. Os recados eram em inglês, e como ele faria sem Joel Santana para ajudá-lo a traduzir? Ele não confiava em outras pessoas. Auxiliar, como ele gostava de dizer, ‘tem que ser um que a gente mate’. Intranquilo, precisando de algo que o animasse, ele foi até o armário dos fundos. Atrás de todas as caixas com as provas e evidências ignoradas, do velho processo do Bandestado até hoje, estava seu brinquedo favorito. Era um bonequinho de vodu representando uma mulher de olhos vendados segurando uma espada numa mão e uma balança na outra. Uma alfinetada na presunção de inocência, outra no amplo direito de defesa, uma terceira no respeito ao sigilo telefônico… As paredes do apartamento tremiam com as gargalhadas do juiz Mauro, enquanto ele torturava a justiça.”
Só escrevi este parágrafo, mas acho que já me credencio para ganhar o Nobel de Literatura. Uma dobradinha brasileira com Lula no Nobel da Paz, já pensaram?
[1] No misteriosamente desaparecido blog Esquerda Caviar (Veja no Web Archive) e que agora aparece no DCM sob o título “Mauro, o juiz que tortura a justiça”
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