Um dia de sol na Niemeyer
author:: chicoary
source:: Um dia de sol na Niemeyer
clipped:: 2023-09-24
published::
Publicado em https://chicoary.wordpress.com.
San Jose, CA, 07/06/2022
A ciclovia ainda não estava pronta, isto é, inaugurada. Serpenteava na borda da Niemeyer, debruçando sobre a pedra, o abismo e o mar. O quanto não estava pronta não sabíamos. O dia estava deslumbrante. Era um fim-de-semana. Um convite para um longo passeio de bicicleta. Mas não fui. Lembrado pela minha mulher evitei o sol para não gerar um queloide na cicatriz recém adquirida numa colisão de dois ônibus. Num deles estava eu. O 110. Do acidente pari o poema trágico “Bólido 110“.
O acidente era algo que estava inscrito no 110 pela sua desabalada carreira do Leblon ao centro da cidade onde eu trabalhava na época. Mas não era esperado da forma que se deu. Podia se prever um choque muito mais violento. Mas não foi o que aconteceu. Não vi o que o motorista estava fazendo pouco antes do acidente mas presumo que estava ocupado em dirigir o veículo e ao mesmo tempo efetuar a cobrança da passagem. A sanha pelo lucro das empresas já abolira o “trocador”. Penso que tal atividade múltipla e simultânea prejudicou a sua atenção fazendo o bater logo na saída do ponto de ônibus. E bateu num outro ônibus à sua frente que estava parado no pequeno engarrafamento causado pelo semáforo fechado num cruzamento próximo.
No momento do impacto eu estava lendo no meu celular com a cabeça um pouco abaixada. Quando ouvi o estrondo pensei: “O ônibus bateu!” Logo fui projetado no anteparo à minha frente. Estava sentado no banco vizinho ao espaço para o cadeirante perto da porta de trás. Estar de olho no celular mudou o ângulo da colisão da minha cabeça com o anteparo. Se estivesse olhando para a frente teria batido de cara. Bati com atesta e o impacto se transformou numa dor lascinante no pescoço no lado direito. Tive muito medo que meu pescoço, já acometido de artrose, se destroçasse. Na testa o ferimento que se abriu do lado esquerdo sangrava sem que eu percebesse. Não sei como não larguei e não perdi meu celular.
A colisão se deu nas proximidades do hospital Miguel Couto. Quando os socorristas chegaram o ônibus foi evacuado e um deles me aconselhou a deitar de costas numa grama próxima enquanto me perguntava do meu estado. Perguntou-me se queria esperar a ambulância e ser removido para o hospital. Diante do meu titubeio avisou que se não quissesse teria que assinar um termo. Então disse que aceitava a remoção. Enquanto esperava avisei minha família. Ou foi antes da chegada do socorrista. Não me lembro. Quando eles chegaram eu já estava dentro da ambulância ainda parada e só pude falar através da porta ainda aberta da ambulância.
No hospital me colocaram numa cadeira de metal numa sala que parecia a antesala do necrotério. De vez em quando passava uma maca com um corpo de alguém doente ou já morto. Assim tomei um “chá de cadeira” com sabor “metálico” por cerca de duas horas. Avisei ao familiares onde estava e eles disseram que não era permitido ir até mim.
Quando foram me atender me levaram para sentar numa cadeira de dentista para tomar pontos no ferimento. A médica que ia dar os pontos era uma dentista. Conversando com ela fiquei sabendo que os dentistas eram comuns nessa tarefa pois “davam os melhores pontos”. Depois aguardei bastante ainda para fazer uma tomografia, eu acho, da cabeça para eliminar ou reduzir a chance de ir para casa com um derrame em curso. Não havia sangramento interno na cabeça, foi o resultado. Então fui colocado numa fila para ainda ver o ortopedista. Resolvi então me evadir. Já não aguentava ficar mais no hospital. Creio que fiz um favor a mim e ao hospital. Enfim podia descansar em casa e o hospital teria os recursos voltados para os casos mais graves causados pela colisão, entre outros.
Uma coisa que pode passar despercebida aos envolvidos numa situação de atendimento público hospitalar é o quão importante são os serviços de saúde gratuitos para a população em várias situações. Nos EUA a classe média abastada ou não é estripada e abre falência ou se afoga em dívidas monstruosas quando é “atendida” numa situação parecida com a minha. Os pobres dão topadas sérias em casa e enfaixam o pé de qualquer jeito com medo de chamar a ambulância e ter uma “morte certa finaceira”.
A colisão do ônibus comigo dentro pode ter salvo a minha vida. Pois se fosse andar naquele dia na ciclovia poderia me encontrar no lugar onde a onda subiu a encosta de pedra e lambeu a ciclovia mal construída ceifando duas vidas, se não me engano.
Durante a minha passagem pelo hospital me deparei com um esquema para advogados fisgarem clientes para processos contra empresas envolvidas em acidentes com terceiros. Parece que a lei exige que alguém da polícia esteja no hospital para algum fim. Acho que era um policial miltar, não me lembro muito bem. Ele se aproximou de mim aparentando ser as sua abordagem algo para me proteger e que estava ali como um expediente legal para isso. Tive essa impressão. Mas logo depois apresentou uma proposta para eu assinar uma procuração para certos advogados processarem a empresa de ônibus. Assinei sem muita convicção pois não acreditava muito nesse tipo de processo e nem que o meu estado, pela sua gravidade, resultasse em algo interessante. No final não deu em nada mesmo.