Salto no escuro

author:: chicoary
source:: Salto no escuro
clipped:: 2023-07-05
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Debaixo da cornija via os carrinhos de brinquedo guiados pelas formigas. Era muito alto. Ventava um pouco. Escolhera a dedo de onde saltar. Queria dar bastante tempo para aquele filme sobre a sua vida.

Mas por que estava ali? É uma longa história que começara bem cedo. Muito cedo coisas estranhas aconteciam e foram evoluindo num crescendo de terror e desânimo. Eram seus sonhos apavorantes que não se pareciam com sonhos nem se pareciam com realidade. Pensara até em consultar os esotéricos e intermediários ditos do além. Mas tinha verdadeiro pavor do contato com tais seres. Suas crenças, ou descrença, ficaram abaladas com os acontecimentos. Para resumir dois casos paradigmáticos vieram à memória. Seus sonhos, se é que poderia chamar assim, seus devaneios, seus transportes, o que seja, levavam-no a incorporar (e aqui precisava usar os termos daquela banda que detestava, na falta de melhores) em outrem.

De certa feita “sonhara” que era um velho alquebrado e solitário. Muitos outros “sonhos” já o tinham levado a um quase desespero. Mas esses últimos superaram todos e por causa disso estava naquelas alturas observando as “formigas” lá embaixo. O velho, desanimado, fora dormir cedo, refugiando-se no oásis do esquecimento de si mesmo que as suas pálpebras cheia de sono propiciavam, começara a sonhar que a “magra” o tinha alcançado e que estava a morrer. A morte era cheia de sutilezas e eclipsava o seu corpo paulatinamente de forma bem lenta, inexorável. A falência era como a sombra de um eclipse avançando e resfriando as partes inferiores do seu corpo. O velho apavorado assistia, paralisado, o turbilhão de sensações desencadeadas por cada célula que imergia na sombra da morte. Não doía muito mas o horror residia nas partes ainda não atingidas, no seu cérebro que parecia ter sido o último a ser eleito para o mergulho final. Assistir o desenrolar da própria falência total num estertor irremediavelmente solitário, mesmo quando há testemunhas, era o único espetáculo cujo privilégio é dado a cada um mas não interessa a ninguém. Antes do final o sonho acabou, não o do velho, que nunca soube se só sonhava ou se o sonho era reflexo do que acontecia realmente como quando sonhamos que vamos cair um pouco antes de cair da cama, mas o dele. Diante da recorrência desse episódios foi se convencendo de que tudo era fruto ou de uma sua loucura ou de invadir involuntariamente, sem saber porque, o corpo e a vida de alguém. Era indiferente. O sabor de realidade era intenso o suficiente para levá-lo à decisão que tomou.

O pináculo dos suas desgraças aconteceu quando se viu, uma vez, no banco de trás de um carro. Seus olhos não alcançavam ver o parabrisa da frente. Estava atrás do banco do motorista e não era muito alto. Muito alta. Sempre que “incorporava” a posse do corpo não era total. Sentia tudo mas não “ouvia” os pensamentos. Era como se o cérebro hospedeiro fosse o seu próprio. Era como se fosse o outro mas que podia bater em retirada a qualquer momento. Não sabia o que desencadeava essa escapada. Mas o que sentia e vivia no outro corpo era terrível o bastante para que essa saída intempestiva não o aliviasse em nada. Para amenizar a falta de comunicação com a alma ou consciência do seu “possuído” acostumou-se a imaginar, empaticamente, o que poderia estar pensando em reação ao que sentia e ao que via aquele corpo que não era seu. Agora era uma criança. Uma menina dentro de um carro. Por isso não via muito lá fora. Começou a imaginar os possíveis pensamentos, mania que o consolava um pouco da quase certeza de que o horror, como das outras vezes, não tardaria. O vento que entrava pelas janelas laterais semiabertas balançava seus cabelos que roçavam sua bochechas de forma aprazível. Eram bochechas de Pinduca, um garoto careca e mudo dos gibis de sua infância. A neotenia nas mulheres é explicada como um fator de proteção que herdaram das crianças. As bochechas são marcas da ingenuidade. Assim eu era, singela e gentil. Gostava de me olhar no meu espelhinho. Imitava a mamãe. “Mas eu não sou sua mãe, pestinha”. O instinto protetor é disparado pelas bochechas. Pelos sinais de fragilidade. Pelo impulso de preservação da espécie. O seu pensamento que misturava infantilidades com erudição de adulto era uma miscelânea. As vezes se pareciam bastante com os que provavelmente seu hospedeiro pensava. Talvez o pensamento não seja separado do corpo e um corpo sempre tenda a ter certos pensamentos. Mas e a erudição? A incorporação era um fenômeno complexo e desconcertante. “Maldita garota.” Sentiu a testa doer e uma umidade quente perto da dor. O motorista enxugou a mancha. Era seu pai. Seu pai? E sua mãe? Quem era? Chamava de mãe aquela que a renegava e uma outra. De onde veio esse pensamento? Do corpo? Quem era a outra? Era cheia de amor e de necessidade de proteção como toda criança. Como todas confiava que os adultos próximos são sua proteção. Mas de onde era essa sensação de orfandade? Tinha pais! Chegaram no prédio onde moravam. Após subirem algo que tinha feito naquele momento, ou antes, desencadeou tudo. Não sabia bem o que. Uma irritação acumulada desabou sobre ela. “Mamãe, está me sufocando!” Por que sempre era assim? Um horror. “Não, eu não estou morta! Não estou morto.” Ninguém ouvia pois não conseguia mais falar. Seus gritos pensados não atingiam nenhum tímpano. “Não é preciso que se preocupem. Estou bem.” Depois, o salto no escuro. Estava escuro lá fora. Parecia com uma cisterna escura  e profunda usada para guardar a água da chuva. Uma cisterna muito perigosa para crianças…

Enquanto caía com seu pequeno corpinho emprestado, como se fosse um kamikaze, teve pela primeira vez a idéia. A fantástica e salvadora idéia. Já no solo, com os ossos e todo o corpo entre uma dor e uma sensaçao anestesiada, como se costuma sofrer no dentista de uma dor longínqua mas que lembra que o corpo se encontra triturado, irremediavelmente perdido para a vida, foi escapando como se algo o puxasse para fora de tudo aquilo, de volta para a sua vida e, agora, em busca do seu destino.

Quando saltou o vento aumentou muito e depois se estabilizou quando atingiu a velocidade limite. Suas faces pareciam que eram desmanchadas por uma mão vigorosa. O alívio que sentiu era espantoso. Nenhuma sombra, nenhum vestígio de medo. Na queda aquele prometido filme não passou. Só se lembrava de trechos de uns versos que lera não sabia onde:

Tu mataste o meu tempo de criança
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Deste-me fogo quando eu tinha sede…


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