Perdoar e esquecer
author:: chicoary
source:: Perdoar e esquecer
clipped:: 2023-02-05
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Segundo Nietzsche, o problema do organismo não deve ser debatido entre o mecanicismo e o vitalismo. O que é que vale o vitalismo enquanto acredita descobrir a especifidade da vida nas forças reativas, aquelas mesmas que o mecanicismo interpreta diferentemente? O verdadeiro problema consiste na descoberta das forças ativas, sem as quais as próprias reações não seriam forças.
Deleuze, in Nietzsche e a filosofia
A análise nietzschiana do tipo forte e fraco é bem explicitada na figura e no esquema abaixo (retirado de um post anterior):
As perspectivas dos fortes e fracos podem ser postas numa tabela:
Avaliação | Fraco | Forte |
---|---|---|
Técnica/Pela aptidão | Ruim | Bom |
Moral | Bom | Mau |
Nietzsche, o mestre da suspeita, inverte também o adágio platônico que diz que a felicidade é atingida pelos virtuosos. Inverte ao dizer que o homem feliz é virtuoso e não que o homem virtuoso é que atinge a felicidade. Uma inversão cheia de significados a partir de uma interpretação de uma troca de posição entre os objetivos, ou os anelos, e os pontos de partida. Tradutores da palavra grega “aretê”, raiz de “aristocracia”, preferem “virtude” (virtu) em vez de “excelência”. Tal preferência é carregada de um viés moral. O homem feliz é aquele que vive a vida longe do ressentimento do homem reativo. Senhor de sua plenitude de viver e escultor de si torna-se virtuoso por escolha e não por injunções externas, mas com seu espírito livre. Este é o seu mais perigoso aspecto ao olhar dos ressentidos que estão na corrida dos ratos em busca da felicidade. Essa espécie de ave de rapina que no seu voo descendente é como um destino.
As inversões são reveladoras de uma nova perspectiva, uma mudança de paralaxe na reflexão. Uma avaliação da própria forma de avaliar. Os provérbios mesmos, implicitamente sábios (às vezes de uma sabedoria popular), tornam-se como “koans” zenbudistas quando confrontados e em conjunto com suas inversões. “Dois pássaros na mão e um voando”? Ou o contrário disso? “Beber o café amargo porque doce basta a vida”? Ou o contrário? A inversão é sempre um instigante motor para um pensamento em que a paralaxe também faz parte da avaliação. Ortega Y Gasset diz que o homem não vive para conhecer, mas conhece para viver e com uma simples rotação desmorona edifícios inteiros de uma construção baseada em outros pressupostos.
A mesma coisa ocorre com a corriqueira avaliação que diz para perdoar mas não esquecer (Veja também a opinião de Shopenhauer sobre o assunto). O “perdoar” parece revelar uma magnanimidade altruísta. O “não esquecer” é assimilado, embora pareça uma nódoa, como uma mnemotécnica, uma forma sublimada do instinto biológico preventivo da repetição do sofrimento, como insignificante diante da magnanimidade do “perdoar”. Tal forma de avaliar é típica do ressentido que, na verdade, não quer esquecer que perdoou, essa sua magnanimidade, não quer que a esqueçam. Também não quer esquecer a ofensa que, daqui por diante, será a sua razão de viver, o seu remoer ressentido, o veneno que o sustentará nos seus longos períodos de inanição, o resultado da sua impotência em responder de forma saudável a uma ofensa. O próprio perdoar é, convenientemente, um bloqueio à sua ação e confina a sua vingança às perenes maquinações ressentidas e para sempre cravadas como um espinho em sua própria alma cada vez mais amesquinhada, embora sob o manto dourado da “magnanimidade” do ato de perdoar.
Já o não-ressentido, o nobre que tem no sentido da “aretê” como excelência a sua expressão, não perdoa mas esquece! Continua excelente na sua resposta imediata e oportunista já que não se estende muito além da situação causadora do agravo. Não importa se saiu vencedor no embate. E se a ofensa caracteriza-se como um denodo à sua honra e respeito de que se acha credor não há que perdoar o que nunca devia ter ocorrido. O que é uma afronta por si só é imperdoável. No entanto, de forma aparentemente contraditória, aquele que já é um homem não-reativo, esquece. Esquece a ofensa. Esquece sem esforço, naturalmente em seu espírito verdadeiramente magnânimo, porque qualquer esforço representa a memória mesma. É capaz de lembrar e separar com altivez o “joio do trigo” na galeria dos que lhe faltaram com o devido respeito sem mesmo lembrar dos detalhes da ofensa, o que reputa inútil pois não pode mais configurar seu agir. Procurando na biologia, e não na moral criada pelos homens, a sabedoria para a vida do homem não reativo acerta seu passo com aquilo mesmo que determina a vida. Como um animal saudável, que em vez de guardar a memória do que ocorreu quando a mão que o alimentava ou afagava de repente o atacou, guarda antes a identidade do dono da mão.
Características do ressentimento
Não nos devemos deixar enganar pela expressão “espírito de vingança”. O Espírito não faz da vingança uma intenção, um fim não realizado, mas, pelo contrário, fornece à vingança um meio. Não compreenderemos o ressentimento enquanto virmos aí apenas um desejo de vingança, um desejo de se revoltar e de triunfar. O ressentimento no seu princípio topológico implica um estado de forças real: o estado das forças reativas que já não se deixam agir, que se furtam à ação das forças ativas. Fornece à vingança um meio: inverter a relação normal das forças ativas e reativas. É por isso que o próprio ressentimento constitui já uma revolta, e já um triunfo dessa revolta. O ressentimento constitui o triunfo do fraco enquanto fraco, a revolta dos escravos e a sua vitória enquanto escravos. É na sua vitória que os escravos formam um tipo. O tipo senhor (tipo ativo) será definido pela faculdade de esquecer, como pelo poder de agir as reações. O tipo do escravo (tipo reativo) será definido pela prodigiosa memória, pelo poder do ressentimento; (…)
Deleuze, in Nietzsche e a filosofia
Estes são todos homens do ressentimento, estes fisiologicamente desgraçados e carcomidos, todo um mundo fremente de subterrânea vingança, inesgotável, insaciável em irrupções contra os felizes, e também em mascaramentos de vingança, em pretextos para vingança: quando alcançariam, realmente o seu último, mais sutil, mais sublime triunfo da vingança? Indubitavelmente, quando lograssem introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria, toda a miséria, de modo que estes um dia começassem a se envergonhar da sua felicidade, e dissessem talvez uns aos outros: ‘é uma vergonha ser feliz! existe muita miséria!’…
Nietzsche, Genealogia da Moral
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