O sábio ignorante um inseto?

author:: chicoary
source:: O sábio ignorante: um inseto?
clipped:: 2023-10-12
published:: abril 6, 2014

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o sabio ignorante-um inseto
Sempre me intrigou o ar sapiente dos especialistas em áreas que não são de sua especialidade ou não estão sob o seu crivo de investigação. Nessas áreas são obrigados a ter o raciocínio de um generalista mas insistem nos seus hábitos de boca entortada pelo cachimbo da especialização. São como um urso peludo e super adaptado ao frio que perde a corrida pela sobrevivência para os “menos adaptados” ursos com pelame menos avantajados que, numa mudança climática que aqueça o ambiente, conseguem melhores desempenhos.

Segundo o Heinlein aí embaixo parece que o especialista é um “inseto”. No entanto eles são muito valorizados desde épocas recentes. Nas conversas em geral as vezes o especialista quer dominar mas desclassifica rapidamente o interlocutor caso componentes estranhos à sua estreiteza de pensamento de “inseto” venham à baila. É sabido que o diálogo sobre as experiências de vida tem mais valor que o perene matraquear daquele que diz “eu sei” e que apenas “sabe” um saber de segunda mão. Que se esquece da pequenez do seu conhecimento parcelar e incompleto que só tem sentido em tarefas específicas e dentro de um corpo mais amplo do conhecimento. Afora isto, nas conversas estaparfúdias que empreende, é troçado pelas costas como um jocoso pedante de carteirinha.

Um ser humano deve ser capaz de trocar uma fralda, planejar uma invasão, matar um porco, conduzir um navio, projetar um prédio, escrever um soneto, equilibrar contas, construir um muro, destrinchar um osso, consolar os moribundos, receber ordens, dar ordens, cooperar, agir sozinho, resolver equações, analisar um novo problema, espalhar esterco, programar um computador, cozinhar uma refeição saborosa, lutar de forma eficiente, morrer galantemente. Especialização é para insetos.
-- Specialization is for insects. (Robert Heinlein)

Uma observação final. Alguns argumentaram que o caminho para alcançar um comportamento inteligente é através da especialização. Isso pode funcionar desde que as suposições feitas na construção de tais sistemas sejam verdadeiras. Para a inteligência geral, no entanto, são necessárias capacidades intelectuais gerais, e esses sistemas devem ser capazes de ter bom desempenho em uma ampla variedade de tarefas. Parafraseando as palavras de Robert Heinlein … Aqueles de nós que estão mais interessados em inteligência artificial do que insetos artificiais concordam com Heinlein.
-- Comment in General Game Playing

Ortega Y Gasset já tinha abordado o tema do especialista, chamado por ele de “o sábio ignorante”, em A rebelião das massas:

Seria de grande interesse, e maior utilidade que a aparente à primeira vista, fazer uma história das ciências físicas e biológicas, mostrando o processo de crescente especialização no trabalho dos investigadores. Isso faria ver como, geração após geração, o homem de ciência tem sido constrangido, encerrado num campo de ocupação intelectual cada vez mais estreito. Mas não é isto o importante que essa história nos ensinaria, mas justamente o inverso: como em cada geração o científico, por ter de reduzir sua órbita de trabalho, ia progressivamente perdendo contato com as demais partes da ciência, com uma interpretação integral do universo, que é o único merecedor dos nomes de ciência, cultura, civilização européia.

A especialização começa, precisamente, num tempo que chama homem civilizado ao homem “enciclopédico”. O século XIX inicia seus destinos sob a direção de criaturas que vivem enciclopedicamente, embora sua produção tenha já um caráter de especialismo. Na geração seguinte, a equação se deslocou, e a especialidade começa a desalojar dentro de cada homem de ciência a cultura integral. Quando em 1890 uma terceira geração assume o comando intelectual da Europa, encontramo-nos com um tipo de científico sem exemplo na história. É um homem que, de tudo quanto há de saber para ser um personagem discreto, conhece apenas determinada ciência, e ainda dessa ciência só conhece bem a pequena porção em que ele é ativo investigador. Chega a proclamar como uma virtude o não tomar conhecimento de quanto fique fora da estreita paisagem que especialmente cultiva, e denomina diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber.

O caso é que, fechado na estreiteza de seu campo visual, consegue, com efeito, descobrir novos fatos e fazer avançar sua ciência, que ele apenas conhece, e com ela a enciclopédia do pensamento, que conscienciosamente desconhece. Como foi e é possível coisa semelhante? Porque convém repisar a extravagância deste fato inegável: a ciência experimental progrediu em boa parte mercê do trabalho de homens fabulosamente medíocres, e menos que medíocres. Quer dizer, que a ciência moderna, raiz e símbolo da civilização atual, deu guarida dentro de si ao homem intelectualmente médio e lhe permite operar com bom êxito. A razão disso está no que é, ao mesmo tempo, vantagem maior e perigo máximo da ciência nova e de toda civilização que esta dirige e representa: a mecanização. Uma boa parte das coisas que é preciso fazer em física e em biologia é faina mecânica de pensamento que pode ser executada por qualquer pessoa. Para os efeitos de inúmeras investigações é possível dividir a ciência em pequenos segmentos, encerrar-se em um e desinteressar-se dos demais. A firmeza e exatidão dos métodos permitem esta transitória e prática desarticulação do saber. Trabalha-se com um desses métodos como com uma máquina, e nem sequer é forçoso para obter abundantes resultados possuir idéias rigorosas sobre o sentido e fundamento deles. Assim a maior parte dos científicos propelem o progresso geral da ciência encerrados num nicho de seu laboratório, como a abelha no seu alvéolo

Por isso cria uma casta de homens sobremodo estranhos. O investigador que descobriu um novo fato da Natureza tem por força de sentir uma impressão de domínio e de segurança em sua pessoa. Com certa aparente justiça se considerará como “um homem que sabe”. E, com efeito, nele se dá um pedaço de algo que, junto com outros pedaços não existentes nele, constituem verdadeiramente o saber. Esta é a situação íntima do especialista, que nos primeiros anos deste século chegou à sua mais frenética exageração. O especialista “sabe” muito bem seu mínimo rincão de universo; mas ignora basicamente todo o resto.

Eis aqui um precioso exemplar deste estranho homem novo que eu tentei, por uma e outra de suas vertentes e aspectos, definir. Eu disse que era uma configuração humana sem igual em toda a história. O especialista serve-nos para concretizar energicamente a espécie e fazendo ver todo o radicalismo de sua novidade. Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é “um homem de ciência” e conhece muito bem sua porciúncula de universo. Devemos dizer que é um sábio ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio.

E, com efeito, este é o comportamento do especialista. Em política, em arte, nos usos sociais, nas outras ciências tomará posições de primitivo, e ignorantíssimo; mas as tomará com energia e suficiência, sem admitir – e isto é o paradoxal – especialistas dessas coisas. Ao especializá-lo a civilização o tornou hermético e satisfeito dentro de sua limitação; mas essa mesma sensação íntima de domínio e valia o levará a querer predominar fora de sua especialidade. E a conseqüência é que, ainda neste caso, que representa um maximum de homem qualificado – especialismo – e, portanto, o mais oposto ao homem-massa, o resultado é que se comportará sem qualificação e como homem-massa em quase todas as esferas da vida.

P.S.: Antes o ignorante era simplesmente aquele que ignora. Ao entrar numa discussão logo era descoberto pelas lacunas na sua informação sobre o mundo.Não era nada de mais e ele próprio, na medida das suas possibilidades, buscava sair deste estado.

Hoje o ignorante é bem informado. É assíduo consumidor de pós-verdades, agora a nova verdade dos ignorantes, sua erudição.


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