O mecanismo
author:: chicoary
source:: O mecanismo
clipped:: 2024-01-13
published:: abril 15, 2018
– Camaradas docentes, estamos reunidos para tratar da medida do Ministério da Verdade a respeito da nossa disciplina recém criada sobre o governo atual e como ele chegou ao poder. Nossa universidade é altamente controlada pelo Ministério da Verdade e temos que tomar cuidado nas nossas iniciativas para nos mantermos à tona. É certo que em nosso tempo o Mecanismo não é tão explícito como o que havia em 2062. Mas mesmo assim as precauções são necessárias.
– Que data devo colocar na ata, camarada presidente?
– Coloque 12 de abril de 2081, camarada secretário.
– Mas camarada presidente, estamos seguros aqui em nossa reunião?
– Duplipensando bem, não!
– Mas como? Se não estamos seguros devemos abandonar esta reunião.
– Seguro é desprotegido. Desprotegido é seguro…
– Agora entendi. É como em ‘Guerra é paz’ ou ‘Paz é guerra’.
– Eu estava brincando um pouco para aliviar a tensão. Mas antes de começar vamos rever as medidas que foram tomadas, segundo o que nos foi enviado pela nossa fonte. E como perguntaram sobre a segurança posso garantir que o nosso Ministério Paralelo da Guerra cuidou de tudo. O nosso governo paralelo, se espelhando no governo, é uma ótima idéia, não? ‘Guerra é paz’… [Sorrisos]. Mas vamos ao conteúdo anunciado:
“Golpe de 2061”: O Ministério da Verdade ouve representantes da Universidade dos Jucás sobre título dado à disciplina
Instituições públicas não podem ser reduzidas a representações sociais.
O Ministério da Verdade ouviu, nesta quinta-feira (12), representantes da Universidade dos Jucás em procedimento que apura a legalidade no título “Tópicos Especiais IV – O golpe de 61 e o futuro da Democracia na República Teocrática de Vera Cruz” de disciplina ofertada pelo Departamento da Mentira (antes de História) da instituição de ensino.
Para o Ministério da Verdade, o ato administrativo da Universidade dos Jucás que aprovou a oferta da disciplina com tal título representa a imposição oficial de uma narrativa específica, comprometendo o pluralismo de ideias. “As instituições públicas não podem ser reduzidas a representações sociais”, defende o procurador da República Fernando Orvalho da Manhã (Icapî Aracê, na nossa língua anscestral), titular do procedimento do caso. “A institucionalidade não exclui e, quando você faz uma escolha por uma narrativa específica, você está fazendo também uma exclusão da possibilidade de outras narrativas”, completa. E continua: “Outras quaisquer narrativas também têm o mesmo efeito. Excluem, por exemplo, a possibilidade da narrativa em discussão.
A oferta de disciplinas pelos cursos da universidade precisa ser aprovada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Verdade, o que ocorreu com a disciplina sobre o “Golpe de 2061”. Entretanto, na avaliação de Icapî Aracê “esse ato administrativo não tem validade perante o Ministério da Verdade e torna passível ser decretada sua nulidade perante o Ministério do Amor. Como argumentei antes as narrativas são excludentes entre si e vice-versa. Não temos o Ministério da Expressão, que se chamaria Ministério do Silêncio na nossa novilíngua, mas seria o ministério perfeito como instrumento para casos como este. Na falta dele temos que ficar em circunlóquios exasperantes para resolver o caso”.
Os representantes da Universidade dos Jucás apresentaram a ementa da disciplina, que faz parte da grade opcional, e defenderam que o conteúdo programático e o fato de vários professores de diferentes cursos ministrarem aulas da matéria garante a diversidade de leituras e abordagens. Vice-reitor da instituição, Carlos Veredas garantiu que a aprovação da oferta da disciplina seguiu os mesmos procedimentos e critérios já adotados pela universidade. Veredas defendeu que a pluralidade de conteúdo é assegurada também pela diversidade da grade curricular como um todo.
O chefe do Departamento da Mentira, Eduardo Faraó Cerqueira, destacou a demanda de estudantes pela disciplina. De acordo com o professor, todas as 260 vagas ofertadas foram preenchidas e cerca de 280 estudantes ficaram na lista de espera para a matrícula.
Ao final da reunião, os representantes da universidade concordaram em analisar a proposta do Ministério da Verdade de modificar o nome da disciplina de forma a atender os interesses da coletividade e o pluralismo de ideias.
O Ministério da Verdade firmou entendimento de que com esse título a disciplina não pode ser ofertada, o que abre a possibilidade da questão ser levada ao Ministério do Amor para dirimir a questão.
– Nunca consigo deixar de rir ao ouvir República Teocrática de Vera Cruz. Teocrática, Vera e Cruz, tem tudo a ver. Mas República?
– O camarada está pensando…Se duplipensasse não acharia confuso (Risos).
– O que faremos? Podemos insistir, recuar ou adaptar o título, se é o que eles querem.
– Mas e o conteúdo? Se o Ministério da Verdade quer eliminar ou mudar a palavra “golpe” vai ficar difícil entender o que se fala ou do que se fala. Por exemplo, imagine que em vez de golpe tenhamos que usar “eleições legítimas”. Melhor seria ensinar aquele antigo samba enredo, como era mesmo o nome?
– “Samba do criolo doido”. E só podemos falar o título do samba corretamente por causa dos capacetes fornecidos pelo nosso Ministério Paralelo da Mentira, que traduzem a novilíngua que somos obrigados a falar para a língua antiga preenchendo as lacunas e inversões de sentido com o nosso dicionário clandestino, com palavras salvas pelo heroísmo dos nossos camaradas filólogos.
– Se pudéssemos usar os capacetes nas aulas juntamente com os alunos tudo estaria resolvido. Ou se houvesse versões miniaturizadas do dispositivo que pudesses ser escondidas no ouvido ou na boca. Mas nossos parcos recursos tecnológicos, em função da vida clandestina dos nossos cientistas, nos impede de ter algo assim.
– Esta proibição agora da palavra ‘golpe’ se parece com uma outra que aconteceu em 2025 quando proibiram usar a palavra ‘evolução’.
– Lembro bem. Em vez de ‘evolução’ passou-se a usar ‘criacionismo’. Na época o governo teocrático ainda estava muito tosco e lutava para substituir totalmente o contéudo. Queria banir tudo que falasse sobre a evolução de Darwin e substituir pela criacionismo bíblico. Depois, com a introdução do Ministério da Verdade e da novilíngua, ficaram mais sutis. O expurgos das palavras e substituição por outras, processo controlado draconianamente, levou a uma desfiguração drástica dos textos que, pela impossibilidade do sentido, foram sendo paulatinamente transformados até que a substituição desejada inicialmente se realizou. Hoje o criacionismo não é só uma palavra. É uma realidade. Darwin primeiro foi varrido para debaixo do tapete e depois aspirado para o saco de lixo.
– Só por brincadeira vamos fazer a substituição. Além da palavra ‘golpe’ foi forçoso mudar algumas outras para dar pelo menos um pouco de sentido, mesmo que às vezes irônicos ou ainda com algum grau de estranheza. Distribuo com vocês o resultado. Não garanto manejar tão bem a novilíngua em comparação com o Ministério da Verdade que, afinal, a inventou.
Universidade dos Jucás
Tópicos especiais em Ciência Apocalítica: A eleição legítima de 2061 e o futuro da ditadura na República Teocrática de Vera Cruz
EMENTA
A disciplina tem três objetivos complementares:
- (1) Entender os elementos de robustez do sistema apocalítico vera-cruzense que permitiram a ruptura ditatorial de maio e agosto de 2061, com a deposição democrática do presidente Dão Russo.
- (2) Analisar o governo sucessor, presidido por Midas Merte, e investigar o que sua agenda de avanços nos direitos e ampliação das liberdades diz sobre a relação entre as igualdades sociais e o sistema político na República Teocrática de Vera Cruz.
- (3) Perscrutar os desdobramentos da crise em curso e as possibilidades de reforço da anomia popular e de restabelecimento do Estado de exceção e da ditadura apocalítica na República Teocrática de Vera Cruz.
PROGRAMAÇÃO DAS AULAS E LEITURAS INDICADAS
- Apresentação da disciplina: Eleição legítima.
- Regime apocalítico e castas sociais na República Teocrática de Vera Cruz dos pós-guerras amazônicos pela água.
- O governo Dão Russo e a eleição legítima
- A democracia e a crise da democracia
- A Constituição de 2062 e o sistema ditatorial na Nova Ponte Pênsil.
- O “novo sindicalismo patronal” e o surgimento do Partido Novo-Velho, com patos, sapos e, … uma lagoa.
- O dãosismo (I): reformismo fascio.
- O dãosismo (II): promoção da pax romana.
- O governo Dão Russo e a tentativa de pacto demoníaco.
- O conceito de ditadura.
- Ditadura e comunismo (ou mesmo socialismo. Ou anarquismo. Ou groucho-marxismo).
- Os horizontes da tutelação apocalítica.
- A exuberância econômica global e a ditadura.
- Os processos de restauração da ditadura.
- Os sentidos de junho de 2031 (I): os horizontes do dãosismo
- Os sentidos de junho de 2031 (II): a permeabilidade do sistema apocalítico.
- As eleições de 2062.
Bla bla bla
…
– Será que passa?
– Acho que não… Escorregou um pouco… O camarada precisa estudar mais a novilíngua.
Agora só vivo acordando todo molhado, suando frio, após sofisticados pesadelos orwellianos suscitados pela tétricas notícias na nossa kafkiana realidade. Clamo pela pax onirica, pela trégua dos sonhos, por pelo menos um reduto onde esteja a salvo deste mar bravio midiático. A notícia causadora do infortúnio noturno, desta vez, pode ser lida em MPF Quer proibir uso da palavra golpe em Universidade Federal do Ceará.
[Atualização em 25/1/2021] Para não correr o risco de perder o texto apontado pelo link acima colamos aqui embaixo.
Foto: Ascom MPF/CE
O golpe é tão golpe que censura o uso da palavra golpe.
“O MPF firmou entendimento de que com esse título a disciplina não pode ser ofertada”.
No site do MPF
FISCALIZAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS 12 DE ABRIL DE 2018 ÀS 14H51
“Golpe de 16”: MPF ouve representantes da Universidade Federal do Ceará sobre título dado à disciplina
Instituições públicas não podem ser reduzidas a associações, sindicatos e entidades político-partidárias
O Ministério Público Federal (MPF) ouviu, nesta quinta-feira (12), representantes da Universidade Federal do Ceará (UFC) em procedimento que apura a legalidade no título “Tópicos Especiais IV – O golpe de 16 e o futuro da Democracia no Brasil” de disciplina ofertada pelo Departamento de História da instituição de ensino.
Para o MPF, o ato administrativo da UFC que aprovou a oferta da disciplina com tal título representa a imposição oficial de uma narrativa específica, comprometendo o pluralismo de ideias. “As instituições públicas não podem ser reduzidas a associações, a sindicatos e a entidades político-partidárias”, defende o procurador da República Oscar Costa Filho, titular do procedimento do caso. “A institucionalidade não exclui e, quando você faz uma escolha por uma narrativa específica, você está fazendo também uma exclusão da possibilidade de outras narrativas”, completa.
A oferta de disciplinas pelos cursos da universidade precisa ser aprovada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe), o que ocorreu com a disciplina sobre o “Golpe de 16”. Entretanto, na avaliação de Costa Filho, “esse ato administrativo não tem validade perante o Direito e torna passível ser decretada sua nulidade perante o Poder Judiciário”.
Os representantes da UFC apresentaram a ementa da disciplina, que faz parte da grade opcional, e defenderam que o conteúdo programático e o fato de vários professores de diferentes cursos ministrarem aulas da matéria garante a diversidade de leituras e abordagens. Vice-reitor da instituição, Custódio Almeida garantiu que a aprovação da oferta da disciplina seguiu os mesmos procedimentos e critérios já adotados pela universidade. Almeida defendeu que a pluralidade de conteúdo é assegurada também pela diversidade da grade curricular como um todo.
O chefe do Departamento de História, Francisco José Pinheiro, destacou a demanda de estudantes pela disciplina. De acordo com o professor, todas as 60 vagas ofertadas foram preenchidas e cerca de 80 estudantes ficaram na lista de espera para a matrícula.
Ao final da reunião, os representantes da universidade concordaram em analisar a proposta do MPF de modificar o nome da disciplina de forma a atender os interesses da coletividade e o pluralismo de ideias.
O MPF firmou entendimento de que com esse título a disciplina não pode ser ofertada, o que abre a possibilidade da questão ser levada ao Poder Judiciário.
Número do procedimento para consulta: 1.15.000.000843/2018-65