O MAPA
author:: chicoary
source:: O MAPA
clipped:: 2023-06-26
published:: novembro 9, 2008
Não temos apenas a ciência das doenças, já que a doença não existe sem saúde. Ambas pertencem àquilo que um médico tem de saber ou ao que ele, com os meios da ciência moderna, procura saber. Aqui estamos perante a pergunta não respondida: o que é saúde? Sabe-se, mais ou menos, o que são as doenças. Elas possuem, por assim dizer, o caráter insurrecional da “falta”. De acordo com o seu aparecimento, elas são um objeto, algo que promove uma resistência, a qual se deve quebrar. Pode-se colocar isso sob uma lupa e julgar o grau de doença através de todos os modos que uma ciência objetivante, em virtude da ciência natural moderna, nos colocou à disposição. No entanto, saúde é algo que se subtrai a tudo isso de uma maneira peculiar. Saúde não é algo que se apresenta como tal num exame, mas algo que existe justamente para se subtrair a um exame. Saúde não é, então, algo de que sempre temos consciência, e não nos acompanha de forma preocupante como a doença. Não é algo que nos advirta ou convide ao contínuo autotratamento. Ela pertence ao milagre do auto-esquecimento.
-- Gadamer em O caráter oculto da saúde
Preâmbulo
João acorda um belo dia e se encaminha para a consulta periódica com a cardiologista. No caminho ia rememorando a sua trajetória de cardíaco. Anos atrás se encantara com a idéia de mergulhar no mar que tanto ama. Ia aprender usar garrafas de ar comprimido. Fez o curso na piscina e ia ser batizado no mar. Precisava de um atestado médico. Resolve, então, pela primeira vez, por conta própria e um pouco a conselho de amigos e parentes, procurar um cardiologista. Afinal tinha tido alguns exames de esforço acusando isquemia no último estágio da esteira. Eram exames exigidos para demissão e os médicos não fizeram nenhuma recomendação na época. João, intrigado com isso, julgava até que teria havido alguma negligência. Convertido então em médico de si mesmo, na verdade usurpando o papel de um clínico geral (como é o costume atual), profissão cada vez mais desvalorizada nestes tempos dos especialistas, foi pedir o atestado a um cardiologista. Dois tios maternos tinham morrido de infarto aos 60 e com a onda da predestinação genética não havia como se esquivar do destino. “Quer adoecer, procure um médico” parecia segredar um demônio pérfido. Acreditando que sairia incólume lá se foi João se safar mais uma vez. Não conseguiu o atestado. Até parecia que o médico tinha mais medo de água que um gato. Conseguiu, sim, uma vertiginosa seqüência de exames culminando na invasão por um cateter das profundezas virginais de suas artérias. Bingo! Lá estava um entupimento! Ameaçador. Enorme. Terrível. Na coronária principal! Metade! Ai! Uma sentença brevemente teria que ser proferida. E foi. A catástrofe anunciada agora tinha todo o poder sobre a sua vida. A partir do diagnóstico parecia que todas as forças do universo da medicina atual conspirariam para a sua realização, nem que fosse como metáfora, nem que fosse como uma nova ordem de poder sobre a sua vida. Mas João não pensava nada disso. Achava-se predestinado e que devia agir para minimizar os danos. Sabe-se lá a quanto tempo o mal grassava em seu interior. Não pensava ainda na paráfrase “A saúde é muito importante para que você deixe totalmente nas mãos dos médicos”. Retomar o seu corpo, agora propriedade da medicina, não era cogitado ainda. O moderno terrorismo médico que promete a salvação impossível através de um único e incontornável messias: a droga, o remédio salvador. Impossível porque parcelar, por não remover e nem considerar incontáveis fatores da vida moderna com suas imposições antinaturais. Hoje em dia tudo se resume a que não sabemos mais morrer e, por isso, não sabemos mais viver. Recentemente João estava intrigado com as notícias sobre o quão caros são os testes de novas drogas e não conseguia evitar o pensamento de que alguém teria que pagar por isso a qualquer custo. A cidadela de Cronin há muito tempo se instalara, pensava. Mas seguia João, crédulo, acuado, medroso, solitário de toneladas de solidão, o seu inexorável curso.
A consulta
Mas voltemos à consulta mais recente de João e não falemos mais do seu “debut”. Chegou na consulta com indagações sobre o que era NNT e tinha até esquecido de imprimir um artigo a respeito que gostaria que a médica visse. Começou então uma espécie de terrorismo velado em que a médica se esquivava de dar muitas explicações com a velha, e já conhecida de João em sua experiência com outros especialistas, atitude de não dar muito papo para leigos. João não era muito “paciente” como os médicos desejariam. Falou então que João era um caso de risco e pareceu receosa de que ele tomasse atitudes tais como interromper o tratamento. João insistiu e obteve informações surpreendentes da própria médica. Por causa da pergunta sobre o NNT a médica defendeu o uso da aspirina falando em 24% de eficácia mas foi reticente em relação à estatina. Disse também que a estatina que ele estava tomando (CRESTOR) não era totalmente testada como outras estatinas mas que se acreditava em sua eficácia por similaridade (Porque era uma, o que a João pareceu um tanto dogmático). João esperou que ela recomendasse mudar de remédio. Nada… João esboçou reclamar dos efeitos colaterais e foi, de forma veladamente agressiva, instado a desfiar quais efeitos estava sentindo. João ficou sem ação na hora e não falou nada embora viesse sentindo certas coisas que o incomodavam. Calou-se mais porque já esperava a velha manobra de atribuir causas outras estranhas ao seu tratamento. O próprio João já estava ficando um especialista nisso. Sentia cansaço? Era a idade! Dores nas costas? Tensão por culpa própria, não sabia relaxar! Seu calcanhar esquerdo estava desenvolvendo um esporão (Fora até a um podólogo para apará-lo)? Devia ser o sapato! Sentia dores musculares e moleza crônica? Devia ser sua aversão à malhação! A médica, insensivelmente, chegou a dizer que, devido ao quadro de João, mesmo que houvesse efeitos colaterais (Que eram raros!) teria que manter as estatinas. Uma luz desconfiada acendeu-se no fundo da sua mente. Calou-se. Um pensamento tênue, um instinto, aconselhava-o a cair fora desse conselheiro tão viciado. Aconteceu então um déjà vu. A médica resolveu medir a sua pressão. Deu alta, ou pelo menos no limiar para alta, e causou o pedido de uma MAPA. Outro mapa, “de pontinhos para ligar”, estava se delineando na cabeça de João. Ficou com a sensação de que os espertos cardiologistas tiram a sua pressão para saber o seu humor e como você reagiu às argumentações deles. Já tinha acontecido antes mas agora a médica também tinha perguntado se ele era “reativo”. João fez-se de desentendido e perguntou o que queria dizer. Ela desconversou (a consulta devia estar ficando um pouco longa para o padrão de tempo que ela devia estabelecer como meta por paciente, desconfiou João) com um leve ar de desprezo, lhe pareceu que ela considerava que ele devia saber a resposta ou como se comportar diante da pergunta. Talvez desconfiasse de algo que estava se passando na mente de João que não fosse do seu agrado. João então foi embora com a incumbência de fazer o tal de MAPA.
O mapa
João também se incumbiu de outro “mapa” que considerou mais importante. Um mapa para tentar sair do labirinto e fugir do minotauro assassino do mau tratamento. Faltava o fio de Ariadne. Teria que ele próprio confeccioná-lo daqui em diante. Precisava se informar mais sobre uma série de coisas que o inquietavam. No dia seguinte cancelou o MAPA por estar no início de uma virose que o prostou por dois dias obrigando-o a faltar ao trabalho. A faina de ligar os pontos do “mapa de pontinhos”, e não o mapa de 24 horas de sua pressão, era urgente e inadiável. Entregou-se a ela com entusiasmo fruto da necessidade. Encontrou vários artigos (Ver no final) interessantes para a sua pesquisa. Num deles, sobre o NNT, era ressaltado que se ele fosse usado como critério de realce da eficácia dos remédios muitos deles não receberiam a atenção que a mídia dá a eles. Descobriu também que a teoria da ortodoxia médica ligada à cardiologia era a trombogênese para explicar a ocorrência do infarto do miocárdio mas que existe outra, a teoria miogênica. A teoria miogênica se concentra na saúde do músculo cardíaco. Descobriu que a idéia de baixar o colesterol surgiu como um dogma da ortodoxia e que nem sempre foi hegemônico. Surpreendentemente foram aparecendo opiniões médicas mostrando que o colesterol, ao contrário de ser um vilão, é na verdade imprescindível para todo o metabolismo. João entrou em conflito com a consciência de sua condição de leigo e o convencimento que o estava iluminando mas que temia ser fruto do seu desejo de se livrar do contato com uma medicina arrogante e prepotente que só o olhava como “paciente”, como objeto, e nunca como sujeito, dono do próprio corpo. Resolveu, então, retomar o seu corpo. E escreveu tudo num blog…
A Saúde da Alma A célebre forma de medicina moral (a de Aríston de Chios), «a virtude é a saúde da alma», deveria ser pelo menos assim transformada para se tornar utilizável: «A tua virtude é a saúde da tua alma». Porque em nós não existe qualquer saúde, e todas as experiências que se fizeram para dar este nome a qualquer coisa malograram-se miseravelmente. Importa que se conheça o seu objectivo, o seu horizonte, as suas forças, os seus impulsos, os seus erros e sobretudo o ideal e os fantasmas da sua alma para determinar o que significa a saúde, mesmo para o seu corpo. Existem, portanto, inúmeras saúdes do corpo; e quanto mais se permitir ao indivíduo, a quem não podemos comparar-nos, que levante a cabeça, mais se desaprenderá o dogma da «igualdade dos homens», mais necessário será que os nossos médicos percam a noção de uma saúde normal, de uma dieta normal, de um curso normal da doença. Será só então que se poderá talvez reflectir na saúde e na doença da alma e colocar a virtude particular de cada um nesta saúde, que corre muito o risco de ser num o contrário do que sucede com outro. Restará a grande questão de saber se podemos dispensar a doença, mesmo para desenvolver a nossa virtude, se, nomeadamente, a nossa sede de conhecer, e de nos conhecermos a nós próprios, não tem necessidade da nossa alma doente tanto como da nossa alma saudável, em resumo, se querer exclusivamente a nossa saúde não será um preconceito, uma cobardia e talvez um resto de barbárie mais subtil e do espírito mais retrógado.
Friedrich Nietzsche, in ‘A Gaia Ciência’
Não existe uma saúde em si, e todas as tentativas de definir tal coisa fracassaram miseravelmente. Depende do seu objetivo, do seu horizonte, de suas forças, de seus impulsos, seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias de sua alma, determinar o que deve significar saúde também para seu corpo. Assim, há inúmeras saúdes no corpo: e quanto mais deixarmos que o indivíduo particular e incomparável erga sua cabeça, quanto mais esquecermos o dogma da ‘igualdade dos homens’, tanto mais nossos médicos terão de abandonar o conceito de uma saúde normal, justamente com dieta normal e curso normal da doença. E apenas então chegaria o tempo de refletir sobre saúde e doença da alma, e de situar a característica virtude de cada um na saúde desta: que numa pessoa, é verdade, poderia parecer o contrário da saúde de uma outra. Enfim, permaneceria aberta a grande questão de saber se podemos prescindir da doença, até para o desenvolvimento de nossa virtude, e se a nossa avidez de conhecimento e autoconhecimento não necessitaria tanto da alma doente quanto da sadia; em suma, se a exclusiva vontade de saúde não seria um preconceito, uma covardia e talvez um quê de refinado barbarismo em retrocesso.
Por trás dos supremos juízos de valor que até hoje guiaram a história do pensamento se escondem máscompreensões da constituição física, seja de classes de indivíduos, seja de classes ou raças inteiras. Podemos ver todas as ousadas insânias da metafísica, em particular como sintomas de determinados corpos; e, se tais afirmações ou negações do mundo em peso, tomados cientificamente, não têm o menor grão de importância, fornecem indicações tanto mais preciosas para o historiador e psicólogo, enquanto sintomas do corpo, como afirmei do seu êxito ou fracasso, de sua plenitude, potência, soberania na história, ou então de suas inibições, fadigas, pobreza, de seus pressentimento do fim, sua vontade de fim.
Nietzche, in a Gaia Ciência apud Selmo Gliksman in A ética do sobre-humano
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