Não, o Duplo Expresso não acabou! ou Transformar os próprios pensamentos em instintos

author:: chicoary
source:: Não, o Duplo Expresso não acabou! ou Transformar os próprios pensamentos em instintos
clipped:: 2023-02-27
published:: fevereiro 7, 2020

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Há dois dias Romulus Maya anunciou o fim do Duplo Expresso. Mas acho que, nem que metaforicamente, nos corações e mentes dos expressonautas o Duplo Expresso continua.

No meio do frenesi da indignação do Romulus coloquei alguns comentários com base no livro do Balthasar Thomass, Afirmar-se com Nietzsche, que achei pertinentes e que reproduzo parcialmente abaixo:

Sempre me interessei por textos de autores que procuram abordar a filosofia como esteio para a arte de bem viver. Por causa disso folheei o livro Afirmar-se com Nietzsche do Balthasar Thomass quando estava numa livraria e achei que valia pena comprá-lo. Algo assim já tinha me ocorrido quando comprei o livro do “Botul”, O demônio do meio dia, na mesma livraria.

O texto do Thomass no capítulo “Transformar os próprios pensamentos em instintos” me impressionou bem:

Libertar-se do domínio da moral e das tradições é uma primeira etapa necessária na conquista de si. Impondo-nos os valores do rebanho, a moral nega a nossa singularidade e, condenando a realidade e as aspirações da vida, ela nos separa de nossa força vital. Mas essa libertação constitui apenas uma primeira etapa, nós devemos ainda nos libertar dessa libertação mesma.

“Por último, minha cara Lou, esta antiga e muito íntima injunção: torne-se o que você é! Sentimos primeiro a necessidade de nos libertarmos de nossas correntes, e, finalmente, falta-nos ainda nos libertar dessa emancipação! Cada um de nós deve suportar esta doença das correntes, mesmo depois de tê-las quebrado” (Carta a Lou Salomé, final de agosto de 1882).

Com efeito, nossas correntes nos marcam perpetuamente, e nosso corpo guarda a impressão de seus elos. A violência da moral e das tradições nos feriu, mas, como nos acostumamos a essa restrição que nos esculpiu e nos serviu de escoramento, a libertação das restrições da moral constitui uma segunda violência que deixa marcas igualmente profundas. Constatamos então que titubeamos sem o apoio da moral, que não podemos nos manter vivos sem ela mesmo sabendo que ela é apenas um tecido de mentiras.

“A besta que está em nós quer ser enganada: a moral é essa mentira de emergência que nos permite não sermos dilacerados. Sem os erros que comportam as hipóteses da moral, o homem teria permanecido animal” (Humano, demasiado humano, 1, 2, 40).

Com efeito, a moral tem o mérito de propor uma hierarquia de nossas pulsões e de assim organizar nossa vida interior, disciplinando nossa energia. Se um tal sistema de preceitos, proibições e princípios nos enfraquece, ele, ao mesmo tempo, nos fortalece canalizando e estruturando nossas pulsões. A moral é como um molde que forma e define os homens. Será que o homem poderá ficar de pé uma vez que se tenha removido esse escoramento?

A força de caráter é uma forma de estupidez

O livre-pensador — aquele que busca criar seus próprios valores, inventar sua própria moral individual — tem uma enorme desvantagem diante do homem ligado à tradição — aquele que obedece cegamente a códigos e valores rígidos [grifos nossos]. De certo ponto de vista, o homem amordaçado pela moral é estúpido e limitado: ele não pensa por si mesmo. Ele ignora todas as outras maneiras de viver possíveis e se refugia em um repertório muito limitado de ações e de escolhas. No entanto, é essa estupidez mesma que lhe dá força: o homem tradicional não hesita em suas decisões, ele age por automatismos, uma vez que os preceitos morais inculcados pela educação, repetidos à saturação, foram transformados em instintos. O que se chama de força de caráter nada mais é do que essa restrição das possibilidades de ação que, libertando-nos dos tormentos da escolha e uniformizando nossos atos, dá a impressão de um caráter marcado e bem definido.

“É a escravidão das opiniões, transformada em instinto pelo hábito, que conduz ao que chamamos de força de caráter. Quando um homem age sob o efeito de motivos pouco numerosos, mas sempre os mesmos, essas ações adquirem uma grande energia; se essas ações se encontrarem de acordo com os princípios dos espíritos subjugados, elas são aprovadas, e fazem incidentalmente nascer no autor um sentimento de consciência. Motivos pouco numerosos, uma conduta enérgica e uma boa consciência, eis o que constitui o que chamamos de força de caráter. O conhecimento das possibilidades e direções múltiplas da ação inexiste nesse caráter forte; sua inteligência carece de liberdade, ela está escravizada, porque só lhe mostrará, em um determinado caso, digamos, duas inteligência carece de liberdade, ela está escravizada, porque só lhe mostrará, em um determinado caso, digamos, duas só lhe mostrará, em um determinado caso, digamos, duas possibilidades. É então entre elas que ele é obrigado a escolher, necessariamente e em conformidade com a sua natureza inteira, e o fará fácil e rapidamente, não tendo que escolher entre cinquenta possibilidades” (Humano, demasiado humano, I, 5, 228).

Assim como a lentidão, a limitação das possibilidades acumula e armazena energia — as proibições morais sendo como diques que obrigam a torrente pulsional a se concentrar em uma só direção. O homem da tradição será assim sempre mais forte do que o livre-pensador que desperdiça sua energia na exploração das possibilidades de ação, na avaliação das consequências de seus atos, na busca das razões e das justificações do seu comportamento. A doutrinação moral, sua disciplina cruel e arbitrária, nos conduz assim a adotar decisões mais firmes e gestos mais seguros e energéticos.

Ser livre é ser mais frágil

Este estado de coisas parece assim levantar uma barreira intransponívei a todo desejo de inovação, renovação ou deposicão de valores antigos. Porquanto a pesquisa, a experimentação e a forçosamente nos dispersam e nos desconcentram. Elas nos fazem perder a segurança intuitiva necessária a toda ação decisiva. Há uma perda de energia na reflexão, na hesitação, nas tentativas falhadas: nossa mão será mais trêmula, imprecisa. A questão se coloca então: como nós, pesquisadores, inovadores, experimentadores individualistas e singulares, podemos ganhar a mesma energia, a mesma segurança, a mesma intuição instintiva que a daqueles que seguem cegamente uma tradição?

“Comparado àquele que tem a tradição do seu lado e não tem necessidade de razões para fundamentar seus atos, o espírito livre é sempre fraco, sobretudo nos seus atos; pois ele conhece demasiados motivos e pontos de vista e tem a mão hesitante, mal desenvolvida. Que meios há agora para torná-lo, mesmo assim, relativamente forte, de sorte que possa pelo menos se afirmar e não se perder inutilmente’? Como nasce o espírito forte? […] De onde vem a energia, a força inflexível, a resistência com as quais o indivíduo, contra a corrente da tradição tenta adquirir um conhecimento totalmente pessoal do mundo? (Humano, demasiado humano, 1, 5, 230).

Para dar uma chance à inovação e à singularidade perante a marreta da tradição e da moral, é, portanto, necessário tornar nossos pensamentos instintivos. E preciso dar-lhes, por sua vez a força do hábito e do automatismo. Nossa cultura tem a particularidade de desconfiar do instinto e de supervalorizar a razão. Ela nos recomenda estarmos “conscientes” de tudo e mais alguma coisa, e vermos a inconsciência como uma tara infantil, um sinal de irresponsabilidade. Ora, podemos facilmente constatar que nossas melhores ações são sempre feitas em um estado de inconsciência e que somente temos necessidade da consciência quando não conseguimos fazer alguma coisa, quando buscamos pistas para explicar nosso fracasso, quando tateamos para encontrar a maneira correta de agir ou, pior, quando não sabemos o que queremos.

“Em toda tomada de consciência se exprime um mal-estar do organismo: é preciso tentar algo novo, nada está pronto o bastante para isso, aí se encontram esforços dolorosos, tensão, superexcitação — é justamente tudo isso, a tomada de  consciência… O gênio reside no instinto: a bondade também. Só se age de maneira madura quando se age instintivamente”  (Fragmento póstumo de 1888, 15 [251).

Assim, só o pianista novato deve a todo momento estar consciente de sua partitura e de seus dedilhados. Quando dominar sua peça, já não pensará nela, todo o aspecto técnico de sua execução executando-se de maneira automática e inconsciente. O playmaker de um time de futebol não tem tempo para fazer uma análise estratégica da posição dos jogadores para saber a quem dirigir seu passe. Ele incorporou essa análise e decide de maneira inconsciente e intuitiva.

A sabedoria do corpo

Toda excelência, toda eficácia repousa, portanto, em instintos inconscientes. A razão disso é simples: as neurociências nos mostram hoje que há um intervalo considerável entre a atividade cerebral e sua tomada de consciência. A consciência chega sempre demasiado tarde, quando a ocasião de agir já passou. Quando o jogador de futebol se torna consciente de uma oportunidade “de gol, o jogo já mudou. Ele deve, portanto, atacar antes de estar consciente disso, de uma maneira intuitiva, por reflexo ou por premonição.

Devemos, portanto, admitir que o nosso corpo, o nosso inconsciente, as nossas pulsões sabem melhor do que a nossa consciência o que é bom para nós. Ao contrário do que a tradição cristã nos ensinou, o corpo não é um mero instrumento a serviço da alma. Ao contrário, a alma, a consciência e a razão são apenas os utensílios do corpo. Este sabe instintivamente o que lhe convém, pois é essencialmente atividade e não uma simples representação esquemática e redutora, como os produtos da mente.

“Mas aquele que está acordado, aquele que sabe, diz: ‘eu sou corpo de um lado ao outro, e nada fora isso; e a alma é apenas uma palavra para algo que pertence ao corpo.

O corpo tem razão, uma grande razão, uma multitude que tem um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.

Sua pequena razão, também ela, meu irmão, que você chama de ‘mente’, é um utensílio do seu corpo, um pequeno utensilio, um joguete da sua grande razão.

‘Eu’, você diz, e você tem orgulho dessa palavra. Mas o que é maior, no que você não quer acreditar – seu corpo e sua grande razão: ele não diz ‘eu’, mas ele o faz” “(Assim falava Zaratustra, I. “Dos desprezadores do corpo”).”

A todo instante, o corpo efetua operações extremamente complexas, como a digestão, a visão, a audição e a regulação de todo o metabolismo, que a consciência seria incapaz de executar ou mesmo entender. É preciso então admitir que o corpo é mais inteligente do que a consciência, infinitamente mais sutil, mais fino, mais perceptivo: deve haver uma sabedoria do corpo.

Incorporar o próprio saber

Para atenuar a fraqueza do homem que reflete, para curar a indecisão e a dispersão do livre-pensador, devemos transformar nossos pensamentos em instintos, incorporar nosso saber.

“Se o grupo conservador dos instintos não a superasse infinitamente em potência, se não exercesse no conjunto um papel regulador: a humanidade pereceria inevitavelmente desses julgamentos a contrassenso e de sua maneira de sonhar acordado, de sua falta de profundidade e sua credulidade, em suma, precisamente de sua consciência. [...] Incorporar o próprio conhecimento e torná-lo instintivo, essa é sempre uma tarefa absolutamente nova, que o olho humano está apenas começando a perceber, que mal se pode identificar com clareza, – uma tarefa que só “percebem aqueles que compreenderam que, até agora, só incorporamos nossos erros e que toda nossa consciência só concerne a erros” (A gaia ciência, I, 11).”

Espiritualizar e não explicar as próprias paixões

A paixão pode nos cegar, nossos instintos podem ser bestiais e inadequados para a vida em sociedade. Nesse caso, observa Nietzsche, o problema não é a paixão em si mesma, mas sua estupidez. As paixões, os instintos e as pulsões são necessárias para a vida, e são mesmo a sua expressão mais profunda. Querer combatê-los por causa de sua estupidez em vez de combater essa estupidez mesma revela então uma estratégia suicida.

“Todas as paixões têm uma época na qual são simplesmente funestas, na qual arrastam suas vítimas para o fundo de todo o peso da estupidez – e uma mais tardia, infinitamente mais tardia, na qual desposam o espírito, se ‘espiritualizam’. Outrora, por causa da estupidez da paixão, fazia-se a guerra contra a própria paixão. [...] Aniquilar as paixões e os desejos, com o único propósito de impedir sua estupidez e as consequências desagradáveis de sua estupidez, parece-nos mesmo hoje pura e simplesmente uma forma aguda de estupidez. [...] A Igreja combate a paixão pela ablação em todos os sentidos da palavra: sua prática, seu ‘tratamento’, é o castratismo. Ela nunca coloca a questão: ‘Como se espiritualiza, embeleza, diviniza um desejo?’ [...] Mas atacar as paixões na raiz significa atacar a vida na sua raiz: a prática da Igreja é hostil à vida” (O crepúsculo dos ídolos. “A moral como contra-natureza”, 1).”

Como os instintos e as paixões são a seiva mesma da vida, não se deve destruí-los atacando-os na raiz. É preciso torná-los inteligentes, espiritualizá-los. Como fazê-lo? Uma segunda tradição pretende curar a estupidez das paixões tornando-as razoáveis. Espinosa mantinha que uma paixão, desde que ela seja compreendida racionalmente, se transforma em uma ação, tanto mais potente quanto esteja fundada em um conhecimento adequado. Antes dele, Sócrates nos convidou a examinar o fundamento racional de nossas crenças, implicando que uma ideia que não possa ser justificada por argumentos não tem o menor valor. Ora, Nietzsche observa:

“Um instinto se enfraquece quando é racionalizado: porque o fato de ser racionalizado o enfraquece” (O Caso Wagner. Posfácio).”

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