Sionismo é judaísmo
Dez mitos sobre Israel
-- Ilan Pappe
3 Sionismo é judaismo
Para examinarmos devidamente a hipótese de que sionismo é o mesmo que judaísmo, devemos começar pelo contexto histórico em que ele nasceu. Desde sua concepção em meados do século XIX, o sionismo foi apenas uma expressão — nada essencial — da vida cultural judaica. Ele nasceu de dois impulsos dentro das comunidades judaicas da Europa central e oriental. O primeiro era a busca por segurança dentro de uma sociedade que se recusava a integrar os judeus como iguais e por vezes os perseguia, fosse por meio de legislação, fosse por meio de levantes organizados ou estimulados pelos poderes estabelecidos para desviar a atenção da população de crises econômicas ou turbulências políticas. O segundo impulso era o anseio por replicar outros novos movimentos nacionais que proliferavam pela Europa na época, durante o que os historiadores chamaram de Primavera dos Povos. Aqueles judeus que tentavam transformar a religião judaica em nação não estavam sozinhos: muitos grupos étnicos e religiosos vivendo nos impérios que se esfacelavam (otomano e austro-húngaro) queriam se redefinir enquanto nação.
As raizes do sionismo moderno podem ser encontradas já no século XVIII, no chamado iluminismo judeu. Tratava-se de um grupo de escritores, poetas e rabinos que ressuscitou o idioma hebraico e expandiu os limites da educação religiosa e tradicional judaica para criar um estudo mais universal de caráter cientifico, literário e filosófico. Na Europa central e oriental, jornais e revistas em hebraico começaram a proliferar. Desse grupo emergiram alguns indivíduos — conhecidos na historiografia sionista como “Precursores do Sionismo” — de maior tendência nacionalista, que associaram o ressurgimento do hebraico ao nacionalismo em seus escritos. Eles fomentaram duas ideias novas: a redefinição do judaísmo como movimento nacional e a necessidade de colonizar a Palestina para devolver aos judeus a pátria ancestral da qual haviam sido expulsos pelos romanos no ano 70. Eles defendiam “o retorno” por meio do que definiam como “colônias agrícolas” (em muitas partes da Europa, os judeus não estavam autorizados a possuir ou cultivar terras, dai o fascínio com a ideia de recomeçar como uma nação de fazendeiros, e não apenas como cidadãos livres).
As ideias sionistas se tornaram mais populares após uma onda brutal de pogroms na Russia em 1881, que as transformou em um programa político propagado pelo movimento chamado "Os Amantes de Sião", que despachou algumas centenas de jovens entusiastas judeus para constituirem as primeiras novas colônias na Palestina em 1882. Essa primeira fase da história do sionismo culmina com os trabalhos e ações de Theodor Herzl. Herzl, que nasceu em Peste, no Império Austro-Húngaro em 1860, mas viveu a maior parte da vida em Viena, começou sua carreira como um dramaturgo interessado na condição e nos problemas do judeu moderno na sociedade, alegando de início que a plena assimilação na sociedade local era a chave para solucionar essa situação difícil. Nos anos 1890 ele se tornou jornalista e, de acordo com sua própria versão, foi nessa época que se deu conta da potência do antissemitismo. Herzl concluiu que não havia esperança de assimilação e optou, então, pela fundação de um Estado judeu na Palestina como melhor solução para o que definiu como “O Problema Judeu”.
A medida que essas primeiras ideias sionistas circulavam entre as comunidades judaicas em países como Alemanha e Estados Unidos, rabinos proeminentes e lideranças dessas comunidades descartavam o sionismo por considerá-lo uma forma de secularismo e modernização, ao passo que os judeus seculares temiam que essas novas ideias levantassem dúvidas quanto à lealdade dos judeus a seus próprios Estados-nações, alimentando assim o antissemitismo. Os dois grupos tinham ideias diferentes de como lidar com a perseguição moderna contra os judeus na Europa. Alguns acreditavam que a solução era entrincheirar ainda mais a religião e a tradição judaicas (como os fundamentalistas islâmicos fariam na mesma época, ao se depararem com a modernização da Europa), enquanto outros defendiam uma maior assimilação da vida não judaica.
Quando as ideias sionistas surgiram na Europa e nos Estados Unidos entre os anos 1840 e 1880, a maioria dos judeus praticava o judaísmo de duas maneiras distintas. Uma envolvia o entrincheiramento: viver dentro de comunidades religiosas muito estritas, repudiando ideias novas como o nacionalismo, e até encarando a modernização em tais moldes como uma ameaça indesejada ao seu modo de vida. A outra maneira envolvia levar uma vida secular, que se diferenciava das comunidades não judaicas apenas em detalhes menores: celebrando certos feriados, frequentando a sinagoga às sextas-feiras e, provavelmente, deixando de comer em público durante o jejum do dia do perdão (Yom Kippur). Gershom Scholem, que foi um desses judeus, relembrou em seu livro de memórias "De Berlim a Jerusalém", que, enquanto membro de um grupo de jovens judeus na Alemanha, costumava jantar com seus amigos no mesmo restaurante em Berlim durante o Yom Kippur; à sua chegada, o proprietário informava-os de que “a sala especial para os cavalheiros que jejuam no restaurante estava pronta[1]. indivíduos e comunidades se viram entre esses dois polos: a secularização, de um lado, e a vida ortodoxa, do outro. Mas vamos analisar mais de perto as posições que cada um assumiu em relação ao sionismo na segunda metade do século XIX.
O secularismo judeu é um conceito ligeiramente bizarro, claro, assim como o são o secularismo cristão e o secularismo islâmico. Os judeus seculares descritos acima eram pessoas com diferentes graus de conexão com a religião (algo muito semelhante aos cristãos da Grã-Bretanha, que celebram a Páscoa e o Natal, mandam seus filhos para colégios da Igreja da Inglaterra ou frequentam as missas de domingo ocasional ou frequentemente). Na segunda metade do século XIX, essa prática moderna do judaísmo se tornou um poderoso movimento conhecido como Reforma, que buscou formas de adaptar a religião à vida moderna sem sucumbir aos seus aspectos anacrônicos. Esse movimento teve especial popularidade na Alemanha e nos Estados Unidos.
Quando os reformistas se depararam com o sionismo pela primeira vez, rejeitaram com veemência a ideia de redefinir o judaísmo como nacionalismo e criar um Estado judeu na Palestina. Entretanto, sua posição antissionista mudou após a criação do Estado de Israel em 1948. Na segunda metade do século XX, um grupo majoritário criou um novo movimento da Reforma nos Estados Unidos, que se tornou uma das organizações judaicas mais fortes do país (embora o movimento só tenha declarado fidelidade a Israel e ao sionismo em 1999). No entanto, um grande número de judeus deixou o novo movimento e estabeleceu o ConseIho Americano de Judaísmo (ACJ, na sigla em inglês), que em 1993 lembrou ao mundo que o sionismo ainda era uma visão minoritária entre os judeus, e que permaneceu leal às antigas noções reformistas acerca do sionismo[2].
Antes desse cisma, tanto na Alemanha como nos Estados Unidos, os membros do movimento da Reforma haviam oferecido argumentos fortes e unânimes contra o sionismo. Na Alemanha, rejeitaram publicamente a ideia de uma nação judaica e se proclamaram “alemães da fé de Moisés”. Um dos primeiros atos dos reformistas alemães foi remover de seus rituais de reza quaisquer referências a um retorno a “Eretz Israel” ou à reconstrução de um Estado. De forma similar, já em 1869 os reformistas estadunidenses alegaram em uma de suas primeiras convenções que
o objetivo messiânico de Israel [ou seja, do povo judeu] não é a restauração de um Estado judeu sob governo de um descendente de Davi, implicando uma segunda separação das nações da Terra, mas a união dos filhos de Deus na profissão de fé da unidade de Deus, de modo a concretizar a unidade de todas as criaturas racionais e seu chamado à santificação moral.
Em 1885, outra conferência reformista declarou: “Não nos consideramos mais uma nação, mas uma comunidade religiosa, e, portanto, não esperamos nem um retorno a Palestina, nem uma devoção sacrificial sob os filhos de Aarão, nem a restauração de qualquer lei referente ao Estado judeu".
Um famoso líder nesse aspecto foi o rabino Kaufman Kohler, que repudiava a ideia “de que a Judeia é o lar dos judeus — uma ideia que ‘desresidencia’ [sic] os judeus por toda a Terra”. Outro líder do movimento no final do século XIX, Issac Mayer Wise, ridicularizou, em diversas ocasiões, lideres como Herzl, comparando-os aos alquimistas charlatães que diziam contribuir para a ciência. Em Viena, cidade de Herzl, Adolf Jellinek argumentou que o sionismo colocava em risco a situação dos judeus na Europa e alegou que a maioria deles era contrária a ideia. “Na Europa, estamos em casa”, declarou.
Além dos reformistas, os judeus liberais da época rejeitavam a ideia de que o sionismo seria a única solução para o antissemitismo. Como Walter Lacquer nos mostra em seu livro, The History of Zionism, judeus liberais consideravam o sionismo um movimento extravagante que não oferecia respostas para os problemas dos judeus na Europa. Eles argumentavam em favor do que chamavam de “regeneração” dos judeus, que envolvia uma demonstração de total lealdade a suas pátrias e um desejo de serem totalmente assimilados enquanto cidadãos[3]. Eles esperavam que um mundo mais liberal pudesse resolver os problemas da perseguição e do antissemitismo. A história mostrou que o liberalismo havia salvado aqueles judeus que tinham se mudado para os, ou viviam nos, EUA e Reino Unido. Aqueles que acreditavam que isso poderia acontecer no resto da Europa estavam enganados, conforme se viu. Mas mesmo hoje, olhando em retrospecto, muitos judeus liberais não veem o sionismo como a resposta certa, seja para hoje ou para aquela época.
Judeus ortodoxos e socialistas começaram a manifestar suas críticas ao sionismo apenas no final dos anos 1890, quando o sionismo se tornou uma força política mais reconhecida graças ao trabalho diligente de Herzl. Herzl compreendia a política contemporânea e escreveu histórias utópicas, tratados políticos e matérias de jornal resumindo a ideia de que seria de interesse da Europa ajudar a construir um Estado judeu moderno na Palestina. Os lideres mundiais não se deixaram impressionar; tampouco os otomanos, que governavam a Palestina. A maior conquista de Herzl foi reunir todos os ativistas em uma conferência em 1897 e, a partir daí, construir duas organizações básicas: um congresso mundial para promover as ideias sionistas globalmente e unidades sionistas para expandir in loco a colonização dos judeus na Palestina.
Assim, com a consolidação das ideias sionistas, as críticas dos judeus que se opunham ao sionismo também se tornaram mais evidentes. Fora do movimento da Reforma, críticas surgiram na esquerda, entre lideres laicos de várias comunidades e junto aos judeus ortodoxos. Em 1897, mesmo ano em que a primeira conferência sionista foi convocada em Basel, um movimento socialista judaico nasceu na Russia: o Bund. Era ao mesmo tempo um movimento político e um sindicato judeu. Os membros do Bund acreditavam que uma revolução socialista, ou mesmo bolchevique, seria uma solução muito melhor para os problemas dos judeus na Europa se comparada ao sionismo, que consideravam uma espécie de escapismo. Ainda mais relevante, quando o nazismo e o fascismo estavam em ascensão na Europa, os bundistas sentiam que o sionismo contribuía para esse ramo do antissemitismo ao por em dúvida a lealdade dos judeus a sua pátria. Mesmo após o Holocausto, os bundistas estavam convencidos de que os judeus deviam buscar espaço em sociedades que valorizassem os direitos humanos e civis, e não viam um Estado-nação judeu como panaceia. Essa forte convicção antissionista, contudo, foi perdendo força lentamente a partir da metade dos anos 1950, e os remanescentes do antes poderoso movimento Bund acabaram decidindo apoiar o Estado de Israel publicamente (eles tinham inclusive uma ramificação no Estado judeu)[4].
A reação do Bund não atrapalhou tanto Herzl como a tépida resposta das elites política e econômica judaicas em lugares como Grã-Bretanha e França. Elas viam Herzl ou como um charlatão de ideias muito desconectadas da realidade, ou pior, como alguém que poderia sabotar a vida dos judeus dentro de sua própria sociedade onde, como na Grã-Bretanha, haviam progredido imensamente em termos de emancipação e integração. Os judeus vitorianos ficaram incomodados com essa reivindicação de soberania judaica em uma terra estrangeira com status equivalente ao de outros Estados soberanos do mundo. Para os setores mais estabelecidos do judaísmo na Europa central e ocidental, o sionismo era uma visado provocadora que colocava em dúvida a lealdade dos judeus ingleses, alemães e franceses à sua própria nação de residência. Devido à falta de apoio a Herzl, o movimento sionista não conseguiu se tornar um agente poderoso até a Primeira Guerra Mundial. Somente após a morte de Herzl, em 1904, outros lideres do movimento — com destaque para Chaim Weizmann, que imigrou para a Grã-Bretanha neste mesmo ano e se tornou um cientista proeminente no pais, contribuindo para os esforços de guerra britânicos durante a Primeira Guerra — construíram uma aliança sólida com Londres que renderia bons frutos ao sionismo, como descreveremos mais adiante neste capítulo[5].
A terceira crítica ao sionismo em seus primeiros dias veio do establishment judeu ultraortodoxo. Até os dias de hoje, muitas comunidades de judeus ultraortodoxos se opõem veementemente ao sionismo, embora seu número seja muito menor do que era no final do século XIX; muitas delas se deslocaram para Israel e agora fazem parte de seu sistema político. Entretanto, como no passado, elas constituem outra maneira não sionista de ser judeu.
Quando o sionismo apareceu pela primeira vez na Europa, muitos rabinos tradicionais chegaram a proibir seus seguidores de se envolverem do modo que fosse com os ativistas sionistas. Eles consideravam que o sionismo interferia na vontade de Deus de manter os judeus exilados até a vinda do Messias, e rechaçavam totalmente a ideia de que os judeus deveriam fazer tudo o que pudessem para dar fim ao “Exílio”. Ao invés disso, precisavam esperar Deus se manifestar sobre o assunto e, no meio tempo, praticar o modo de vida tradicional. Embora fosse permitido aos indivíduos estudar na Palestina e visitá-la em peregrinação, isso não devia ser interpretado como autorização para um movimento de massas. O grande rabino hassídico alemão de Dzikover resumiu essa posição com rispidez quando disse que o sionismo lhe pedia para substituir séculos de lei e sabedoria judaica por um pano, um chão e uma canção (no caso, uma bandeira, um território e um hino[6]).
Contudo, nem todos os principais rabinos se opunham ao sionismo. Havia um pequeno grupo de figuras bastante famosas e influentes, como os rabinos Al-Qalay, Gutmacher e Qalisher, que apoiava o programa sionista. Era uma minoria, mas, em retrospecto, o grupo foi importante para a implementação dos alicerces da ala nacionalista religiosa do sionismo. Suas acrobacias religiosas eram bem impressionantes. Na historiografia israelense, eles são chamados de “Pais do Sionismo Religioso”. O Sionismo Religioso é um movimento muito importante no Israel contemporâneo, pois o país é o lar ideológico do movimento messiânico de assentamentos, Gush Emunim, que colonizou a Cisjordânia e a Faixa de Gaza de 1967 em diante. Esses rabinos não apenas conclamaram os judeus a deixar a Europa, mas também afirmaram que, para os judeus, colonizar a Palestina cultivando suas terras era não só uma obrigação nacionalista, mas também religiosa (não é de surpreender que os nativos da terra não figurem em seus escritos). Eles alegavam que esse ato não interferiria na vontade de Deus; pelo contrário, seria a realização das profecias dos profetas e promoveria a plena redenção do povo judeu e a vinda do Messias[7].
A maior parte dos homens proeminentes do judaísmo ortodoxo rejeitou esse plano e essa interpretação. Para eles, o sionismo era mais um assunto desagradável a ser combatido. O novo movimento não queria apenas colonizar a Palestina; também esperava secularizar o povo judeu, inventar o “novo judeu” em antítese aos judeus ortodoxos religiosos da Europa. Isso culminou na imagem de um novo judeu europeu que já não podia morar na Europa em razão do antissemitismo, mas precisava viver como europeu fora do continente. Assim, como muitos movimentos do período, o sionismo se redefiniu em termos nacionais — mas era radicalmente diferente, porque escolheu uma nova terra para sua conversão. O judeu ortodoxo era ridicularizado pelos sionistas, visto como um indivíduo que só poderia ser redimido pelo trabalho duro na Palestina. Essa transformação é lindamente descrita no romance utópico-futurista de Herzl, Altnueland, que conta a história de uma expedição de turistas alemães visitando o Estado judeu muito tempo após sua implementação[8]. Antes de chegar à Palestina, um dos turistas que havia se deparado com um jovem judeu ortodoxo mendigando, volta a se deparar com ele na Palestina, onde agora é secular, instruído e extremamente rico e feliz.
O papel da Bíblia na vida judaica é outra diferença evidente entre o judaísmo e o sionismo. No mundo judeu pré-sionista, a Bíblia não era ensinada como um texto singular dotado de qualquer conotação política, ou mesmo nacional, nos muitos centros de ensino judaicos na Europa ou no mundo árabe. Os rabinos mais proeminentes tratavam a história política contida na Bíblia — e a ideia de soberania dos judeus na terra de Israel — como tópicos marginais no seu mundo espiritual de aprendizado. Estavam muito mais preocupados, como também estava o judaísmo em geral, com os escritos sagrados que focavam na relação entre os crentes, e em particular em suas relações com Deus.
De Os Amantes de Sião em 1882 aos lideres sionistas às vésperas da Primeira Guerra Mundial, que pediram o apoio da Grã-Bretanha em sua reivindicação da Palestina, referências à Bíblia foram bem comuns. Ao buscar seus próprios interesses, os lideres sionistas desafiaram os fundamentos das interpretações bíblicas tradicionais. Os Amantes de Sião, por exemplo, liam a Bíblia como a história de uma nação judaica nascida na terra da Palestina, oprimida e exilada no Egito a mando do regime canaanita e que, mais tarde, retornou à sua terra para libertá-la sob a liderança de Josué. A interpretação tradicional, em contraste, não foca na narrativa de uma nação e sua pátria, mas na história da descoberta de um deus monoteísta por Abraão e sua familia. A maioria dos leitores deve estar familiarizada com essa narrativa convencional dos abraâmicos que descobrem Deus e, após provações e tribulações, acabam no Egito[9] — algo difícil de interpretar como a história de uma nação oprimida envolvida em um esforço de libertação. Entretanto, foi esta última a interpretação preferida pelos sionistas, e ela segue em voga no Israel de hoje.
Um dos usos mais intrigantes da Bíblia pelo sionismo é aquele praticado pela ala socialista do movimento. A fusão entre socialismo e sionismo começou a ganhar importância após a morte de Herzl em 1904, quando as varias facções socialistas se tornaram os partidos predominantes dentro do movimento sionista internacional e na Palestina. Para os socialistas, como disse um deles, a Bíblia fornecia “o mito do nosso direito sobre a terra[10]. Era na Bíblia que liam histórias sobre fazendeiros, pastores, reis e guerras hebraicas, das quais se apropriaram enquanto descrições de uma antiga era de ouro do nascimento de sua nação. Voltar aquela terra significaria voltar a ser fazendeiro, pastor e rei. Assim, eles se viram confrontados com um paradoxo desafiador, pois queriam ao mesmo tempo secularizar a vida judaica e usar a Bíblia como justificativa para colonizar a Palestina. Em outras palavras, mesmo que não acreditassem em Deus, Ele lhes havia prometido a Palestina.
Para muitos lideres sionistas, a referência bíblica à terra da Palestina era apenas um meio para atingir seus fins, e não a essência do sionismo. Isso fica especialmente claro nos textos escritos por Theodor Herzl. Em um famoso artigo para o The Jewish Chronicle (10 de julho de 1896), ele apontou a Bíblia como alicerce para a reivindicação da Palestina pelos judeus, mas manifestou seu desejo de que o futuro Estado judaico fosse conduzido de acordo com as filosofias moral e política europeias de seu tempo. E provável que Herzl fosse mais secularista que o grupo de lideres que o sucedeu. Esse profeta do movimento cogitou a sério alternativas à Palestina, como Uganda, enquanto terra prometida de Sião. Ele também olhou para outros destinos no norte e sul da América e no Azerbaijão[11]. Com a morte de Herzl e a ascensão de seus sucessores, o sionismo se estabeleceu na Palestina e a Bíblia se tornou ainda mais relevante enquanto prova do direito divino dos judeus sobre aquelas terras.
A consolidação da Palestina como único território onde o sionismo poderia ser implementado foi reforçada após 1904 pelo poder crescente do sionismo cristão na Grã-Bretanha e na Europa. Teólogos que estudavam a Bíblia e arqueólogos evangélicos que escavaram “a Terra Santa” acolheram o assentamento de judeus como a confirmação de sua crença religiosa segundo a qual o “retorno judaico” desencadearia a concretização da promessa divina do fim dos tempos. O retorno dos judeus predizia o retorno do Messias e a ressureição dos mortos. Para o projeto sionista de colonização da Palestina, essa crença religiosa esotérica foi muito conveniente[12]. No entanto, por trás dessas visões religiosas havia sentimentos antissemitas clássicos. Empurrar as comunidades judaicas para a Palestina, afinal, era mais que um imperativo religioso; auxiliava também a criação de uma Europa sem judeus. Portanto, havia um duplo ganho: livrar-se dos judeus na Europa e, ao mesmo tempo, cumprir o esquema divino segundo o qual a Segunda Vinda se daria com o retorno dos judeus à Palestina (e sua subsequente conversão ao cristianismo, ou sua queima no inferno em caso de recusa).
Daquele momento em diante, a Bíblia se tornou uma justificativa e um mapa para a colonização da Palestina pelos sionistas. Historicamente, a Bíblia foi conveniente para o sionismo desde seu surgimento até a criação de Israel em 1948. Ela desempenhou um papel importante para a narrativa israelense dominante — tanto para propósitos domésticos como externos —, segundo a qual Israel era a mesma terra prometida a Abraão por Deus na Bíblia. De acordo com essa narrativa, “Israel” existiu até o ano 70, quando os romanos a demoliram e exilaram sua população. A celebração religiosa da data em que o segundo Templo em Jerusalém foi destruído era um dia de luto. Em Israel, tornou-se um feriado nacional de luto quando todos os empreendimentos do setor de lazer, incluindo restaurantes, são obrigados a fechar na noite que antecede a data.
A principal prova acadêmica e secular dessa narrativa foi fornecida em anos recentes pela chamada arqueologia bíblica (em si um conceito oximoro, pois a Bíblia é um grande trabalho literário, escrito por muitas pessoas em diferentes períodos, e não exatamente um texto histórico[13]). Após o ano 70, segundo a narrativa, a terra palestina ficou mais ou menos vazia até o retorno sionista. No entanto, sionistas proeminentes sabiam que não bastaria apelar à autoridade bíblica. Colonizar as terras já habitadas da Palestina exigiria uma política sistemática de assentamento, expropriação e até mesmo de limpeza étnica. Nesse sentido, retratar a expropriação da Palestina como cumprimento de um esquema divino cristão foi um recurso inestimável para galvanizar o apoio cristão global ao sionismo.
Como vimos, depois que todas as outras opções territoriais foram descartadas e o sionismo focou no reclame da Palestina, a geração de lideres que sucedeu os pioneiros começou a injetar ideologia socialista, e até mesmo marxista, no crescente movimento secular. O objetivo agora era estabelecer (com a ajuda de Deus) um projeto judeu secular, socialista e colonialista na Terra Santa. Como os nativos colonizados logo aprenderam, seu destino final já estava selado independentemente de os colonos trazerem consigo a Bíblia, os escritos de Marx ou os tratados do Iluminismo europeu. O que importava era se, ou como, eles seriam incluídos na visão de futuro dos colonos. Sendo assim, é revelador que os nativos aparecessem nos registros obsessivos mantidos pelos lideres e colonos pioneiros como obstáculos, forasteiros e inimigos, pouco importando quem eles eram ou quais eram seus próprios anseios[14].
Os primeiros comentários antiárabes desses registros foram escritos quando os palestinos ainda eram anfitriões dos colonos, que rumavam a antigas colônias ou se instalavam nas cidades. Suas queixas partiam de suas experiências formativas enquanto buscavam trabalho e meios de subsistência. Esse dilema parecia afetar todos eles, pouco importando se seguiam para as antigas colônias ou tentavam a sorte nos vilarejos. Onde quer que estivessem, precisavam trabalhar ombro a ombro com fazendeiros ou trabalhadores palestinos para sobreviver. Com esse contato íntimo, mesmo os colonos mais ignorantes e insolentes perceberam que a Palestina era um pais de paisagem humana totalmente árabe.
David Ben-Gurion, líder da comunidade judaica durante o período do Mandato Britânico e primeiro primeiro-ministro de Israel, descreveu os trabalhadores e fazendeiros palestinos como beit mihush (“um viveiro infestado de dor”). Outros colonos referiam-se aos palestinos como forasteiros ou estranhos. “As pessoas daqui nos parecem mais estranhas do que os camponeses russos ou poloneses”, escreveu um deles, e acrescentou: “Não temos nada em comum com a maioria das pessoas que vivem aqui[15]. Eles ficaram surpresos meramente por encontrar gente na Palestina, uma terra que esperavam estar vazia, conforme lhes haviam dito. “Senti repulsa ao descobrir que em Hadera [colônia sionista pioneira construída em 1882] parte das casas era ocupada por árabes”, observou um colono, enquanto outro escreveu para a Polônia dizendo que ficou chocado ao ver muitos homens, mulheres e crianças árabes atravessando Rishon LiZion (outra colônia de 1882[16]).
Como o país não estava vazio, e era preciso lidar com a presença dos nativos, convinha ter Deus ao seu lado — mesmo que você fosse ateu. Tanto David Ben-Gurion como seu colega e amigo próximo Yitzhak Ben-Zvi (que liderou as facções socialistas do sionismo na Palestina ao lado de Ben-Gurion e, mais tarde, tornou-se o segundo presidente de Israel) usaram a promessa bíblica como justificativa principal para a colonização da Palestina. Também fizeram isso os ideólogos posteriores a eles no Partido Trabalhista durante os anos 1970 e, mais tarde, o “biblismo” secular e bastante superficial do partido Likud e suas dissidências de anos recentes.
A interpretação da Bíblia como justificativa divina para o sionismo ajudou os socialistas a reconciliarem sua adesão aos valores universais de solidariedade e igualdade com o projeto colonial de expropriação. De fato, como a colonização era o objetivo principal do sionismo, precisamos nos perguntar que tipo de socialismo era esse. Afinal de contas, na memória coletiva de muitos, o período de ouro do sionismo é associado a uma vida coletivista e igualitária incorporada pelos kibutzim. Esse modo de vida perdurou por muito tempo após a fundação de Israel e atraiu jovens do mundo todo, que foram até lá como voluntários para vivenciar o comunismo em sua forma mais pura. Muito poucos entendiam, ou poderiam saber, que a maior parte do sistema de kibutzim foi construída sobre vilarejos palestinos destruídos, cujas populações foram expulsas em 1948. Como justificativa, os sionistas alegavam que aqueles vilarejos eram antigas localidades judaicas mencionadas na Bíblia e, portanto, sua apropriação não seria uma ocupação, mas uma libertação. Um comitê especial de “arqueólogos bíblicos” adentrava uma vila deserta e determinava qual era o seu nome nos tempos bíblicos. Agentes enérgicos do Fundo Nacional Judaico estabeleciam então o assentamento com seu nome recém-resgatado[17]. Um método semelhante foi usado após 1967 pelo então ministro do trabalho, Yigal Alon, um socialista secular judeu, para construir uma nova cidade perto de Hebron, já que ela “pertencia” ao povo judeu, de acordo com a Bíblia.
Alguns estudiosos israelenses críticos à pratica, sendo os mais notórios Gershon Shafir e Zeev Sternhell (e também o académico estadunidense Zachary Lockman), explicaram como a apropriação colonial de terras maculou a suposta era dourada do socialismo sionista. Como mostram esses historiadores, o socialismo dentro do sionismo, enquanto práxis e modo de vida, era sempre uma versão limitada e condicionada da ideologia universal. Os valores e aspirações universais que caracterizavam os muitos movimentos ideológicos da esquerda ocidental foram nacionalizados ou sionizados desde muito cedo na Palestina. Não é de impressionar, portanto, que o socialismo tenha deixado de ser atraente para as gerações seguintes de colonos[18].
Ainda assim, a religião permaneceu um aspecto importante do processo mesmo após as terras terem sido tiradas dos palestinos. Em seu nome, podia-se evocar e asseverar um direito moral ancestral sobre a Palestina que desafiava quaisquer outras reivindicações externas à terra durante o período de agonia do imperialismo. Esse direito também suplantava as reivindicações morais da população nativa. Um dos projetos colonialistas mais socialistas e seculares do século XX exigia exclusividade em nome de uma promessa puramente divina. O respaldo dos textos sagrados foi muito valioso para os colonos sionistas, e extremamente custoso para a população local. O ultimo livro do brilhante Michael Prior, já falecido, The Bible and Colonialism, mostrou que, ao redor do mundo, verificaram-se projetos semelhantes que tinham muito em comum com a colonização da Palestina[19].
Após a ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza por Israel em 1967, a Bíblia continuou sendo utilizada para propósitos semelhantes. Já mencionei Yigal Allon, que usou a Bíblia para justificar a construção de uma cidade judaica, Qiryat Arba, em terras expropriadas do povo de Hebron, cidade palestina vizinha. Qiryat Arba logo se tornou terra fértil para aqueles que levavam a Bíblia ainda mais a sério, como um guia de ações. Eles escolheram de forma seletiva os capítulos e frases bíblicos que, aos seus olhos, justificavam a expropriação dos palestinos. Com o passar dos anos, conforme a ocupação persistia, persistia também o regime de brutalidade contra os destituídos. Esse processo de legitimação política a partir de um texto sagrado pode desaguar em um fanatismo perigoso. A Bíblia, por exemplo, traz referências a genocídios: os amalequitas foram assassinados até o ultimo indivíduo por Josué. Hoje existem aqueles (por enquanto apenas uma minoria fanática, felizmente) que se referem aos palestinos — e a todos os que, ao seu ver, não são judeus o suficiente — como amalequitas[20].
Referências semelhantes ao genocídio em nome de Deus aparecem na Hagadá judaica para o Pesach. Sem dúvida, a história principal do Sêder de Pessach — em que Deus envia Moisés e os israelitas a uma terra habitada por outros para que a usem como julgarem melhor — não é uma questão imperativa para a grande maioria dos judeus. Trata-se de um texto literário, não de um manual de guerra. Entretanto, ele pode ser explorado pela nova corrente de pensamento messiânico judaico, como ocorreu no assassinato de Yitzhak Rabin, em 1995, e no verão de 2015, quando foram queimados vivos um adolescente e, em um segundo incidente, um casal e seu bebê. A nova Ministra da Justiça de Israel, Ayelet Shaked, expôs ideias semelhantes, embora até aqui só as tenha aplicado aos palestinos que morreram tentando resistir a Israel: a familia inteira, ela disse, deveria “seguir seus filhos, nada seria mais justo. Deveriam desaparecer, assim como as residências físicas onde criaram as cobras. Do contrário, novas cobrinhas serão criadas ali[21]. Por ora, isso é apenas um alerta para o futuro. Desde 1882, como vimos, a Bíblia tem sido usada como justificativa para a expropriação. No entanto, nos primeiros anos do Estado de Israel, de 1948 a 1967, as referências bíblicas diminuíram e passaram a ser empregadas apenas nas bandas da extrema-direita do movimento sionista, que a usavam para justificar seu entendimento de que os palestinos seriam subumanos e eternos inimigos do povo judeu. Após a ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza em 1967, esses judeus messiânicos e fundamentalistas, criados dentro do Partido Nacional Religioso, o MAFDAL, agarraram a oportunidade de converter suas alucinações em ações concretas. Eles se instalaram em todos os cantos dos territórios recém-ocupados, tivessem ou não consentimento do governo. Criaram bolsões de vida judaica dentro do território palestino e começaram a se comportar como se todo ele lhes pertencesse.
As facções mais militantes do Gush Emunim, o movimento de assentamentos pós-1967, tiraram vantagem das circunstâncias muito particulares criadas pelo governo israelense na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e levaram ao extremo sua licença para expropriar e abusar em nome dos textos sagrados. A lei israelense não valia nos territórios ocupados, onde vigoravam regulações militares emergenciais. No entanto, esse regime legal militar não valia para os colonos, que ficaram de muitas formas imunes as sanções de ambos sistemas legais. Sua instalação forçada em bairros palestinos de Hebron e Jerusalém, a derrubada de pés de oliveira e o incêndio criminoso de campos de cultivo palestinos eram todos justificados como parte do dever divino de ocupar “Eretz Israel”.
Mas a interpretação violenta da mensagem bíblica pelos colonos não valia apenas para os territórios ocupados. Elas começaram a abrir caminho no coração de cidades de convivência árabe-judaica em Israel, como Acre, Jaffa e Ramleh, para perturbar o delicado modo de vida que havia prevalecido ali durante anos. A migração de colonos para esses pontos sensíveis internos às fronteiras israelenses pré-1967 foi capaz de sabotar, em nome da Bíblia, as relações já hostis entre o Estado judeu e sua minoria palestina.
A justificativa final oferecida para o reclame sionista da Terra Santa, como determinado pela Bíblia, foi a necessidade de um porto seguro para os judeus do mundo todo, sobretudo após o Holocausto. Contudo, mesmo que a alegação fosse verídica, talvez fosse possível encontrar uma solução que no se restringisse ao mapa bíblico e não envolvesse a expropriação dos palestinos. Essa posição ganhou voz em uma porção de personalidades bem conhecidas, como Mahatma Gandhi e Nelson Mandela. Eles insinuaram que o melhor seria pedir aos palestinos que propiciassem um porto seguro para os judeus perseguidos em conjunto com a população nativa, e não em detrimento dela. Mas o movimento sionista considerava essa hipótese uma heresia.
A diferença entre se instalar ao lado do povo nativo e simplesmente expulsá-lo foi reconhecida por Mahatma Gandhi quando o filósofo judeu Martin Buber pediu que ele demonstrasse apoio ao projeto sionista. Em 1938, Ben-Gurion havia pedido a Buber que pressionasse diversas figuras famosas e de grande reputação moral para que manifestassem apoio público ao sionismo. Eles sentiam que a aprovação de Gandhi, enquanto líder de uma batalha nacional não violenta contra o imperialismo, seria especialmente útil, e estavam dispostos a explorar seu respeito por Buber para conseguir isso. O principal depoimento de Gandhi sobre a Palestina e a questão judaica apareceu no editorial que escreveu para o Harijan em 11 de novembro de 1938, em meio a uma grande rebelião dos nativos da Palestina contra as políticas pró-sionistas do governo britânico, e teve grande circulação. Gandhi abriu o artigo dizendo que tinha total empatia pelos judeus, povo que havia sido submetido durante séculos a tratamentos desumanos e perseguições. Mas, ele acrescentou,
minha empatia não me cega para a exigência de justiça. O clamor por um lar nacional para os judeus não tem muito apelo para mim. Buscam sancioná-lo com base na Bíblia e na tenacidade com que os judeus almejaram esse objetivo após retornarem à Palestina. Por que não deveriam, como qualquer outro povo da Terra, fazer daquele país sua casa, onde nascem e onde ganham seu pão[22]?
Gandhi questiona então a própria lógica fundacional do sionismo político, rejeitando a ideia de um Estado judeu na terra prometida ao apontar que “a concepção bíblica da Palestina não é um tratado geográfico”. Portanto, Gandhi desaprovava o projeto sionista por razões tanto políticas como religiosas. O endosso desse projeto pelo governo britânico só serviu para afastá-lo ainda mais da causa. Ele não tinha dúvidas sobre a quem pertencia a Palestina:
A Palestina pertence aos árabes da mesma forma que a Inglaterra pertence aos ingleses ou a França aos franceses. E errado e desumano impor os judeus aos árabes [...] Seria sem dúvida um crime contra a humanidade suprimir a dignidade dos árabes para que a Palestina seja devolvida aos judeus, parcial ou totalmente, como seu território nacional[23].
A resposta de Gandhi à questão palestina contém diferentes camadas de sentido, que vão desde uma posição ética até o realismo político. O interessante é que, ao mesmo tempo em que acreditava firmemente na indissociabilidade entre política e religião, Gandhi rejeitou com consistência e veemência o nacionalismo cultural e religioso do sionismo. Uma justificativa religiosa para reivindicar um Estado-nação não lhe parecia cabível em nenhum sentido substancial. Buber respondeu ao artigo com uma tentativa de justificar o sionismo, mas ao que parece Gandhi ja estava cansado e a correspondência entre os dois cessou.
De fato, o espaço que o movimento sionista reivindicava para si não era determinado pela necessidade de resgatar judeus perseguidos, mas pelo desejo de tomar a maior parte possível do território palestino com o menor número de habitantes que conseguissem. Estudiosos judeus seculares e austeros tentaram manter uma posição “científica” ao traduzirem uma promessa vaga do passado ancestral em um fato presente. O projeto já havia sido iniciado pelo principal historiador da comunidade judaica na Palestina do Mandato Britânico, Ben-Zion Dinaburg (Dinur), e seguiu firme após a criação do Estado em 1948. Seus produtos finais sio bem representados na citação do site do Ministério de Relações Exteriores israelense reproduzida no capítulo 1. A tarefa de Dinur nos anos 1930, e de todos os seus sucessores desde então, era provar cientificamente que houvera uma presença judaica na Palestina desde os tempos romanos.
Não que alguém duvidasse disso. Apesar de as evidências históricas de que os judeus que moravam na Palestina do século XVIII rechaçassem a ideia de um Estado judeu, assim como os judeus ortodoxos do final do século XIX, esse dado foi rejeitado sem remorso no século XX. Dinur e seus colegas exploraram a estatística de que os judeus representavam mais de 2 por cento da população palestina do século XVIII para provar a validade da promessa bíblica e da reivindicação moderna da Palestina pelos sionistas[24]. Essa narrativa se tornou a versão padrão e amplamente aceita da história. Um dos professores de história mais distintos da Grã-Bretanha, Sir Martin Gilbert, produziu muitos anos atrás o Atlas of the Arab-Israeli Conflict, cujas muitas edições foram publicadas pela Oxford University Press[25]. O Atlas começa com a história do conflito em tempos bíblicos, dando por certo que o território era um reino judaico para onde os judeus retornaram após dois mil anos de exílio. Os mapas do início contam a história inteira: o primeiro mostra a Palestina bíblica; o segundo, a Palestina sob os romanos; o terceiro, a Palestina no tempo das cruzadas; e o quarto, a Palestina em 1882. Ou seja, nada de importante aconteceu entre a era medieval e a chegada dos primeiros sionistas. A Palestina só é digna de nota quando há estrangeiros — romanos, cruzados, sionistas — nela.
Os textos didáticos israelenses de hoje oferecem a mesma mensagem de direito à terra baseado em uma promessa bíblica. De acordo com uma carta enviada pelo Ministério da Educação em 2014 a todas as escolas de Israel “a Bíblia fornece a infraestrutura cultural do Estado de Israel, nela se ancora o nosso direito à terra[26]”. Hoje os estudos bíblicos são um componente crucial e expandido do currículo, com foco especial à Bíblia enquanto registro de uma história ancestral que justifica a reivindicação territorial. As histórias bíblicas e as lições nacionais que podem ser aprendidas a partir delas se mesclam ao estudo do Holocausto e da criação do Estado de Israel em 1948. Há uma ligação direta entre essa carta de
2014 e as evidências apresentadas por David Ben-Gurion em 1937 à Comissão Real Peel (o grupo de inquérito britânico montado para tentar encontrar uma solução para o conflito iminente). Nas discussões públicas acerca do futuro da Palestina, Ben-Gurion brandia um exemplar da Bíblia para os membros do comitê, gritando: “Este é o nosso Qushan [a prova de registro de terras otomana], nosso direito à Palestina não vem de um tabelionato, a Bíblia é o nosso tabelião[27].
Historicamente, é óbvio, não há sentido em ensinar a Bíblia, os acontecimentos com os judeus da Europa e a guerra de 1948 como um mesmo capítulo histórico. Todavia, sob o viés ideológico, os três tópicos são interligados e doutrinados como a principal justificativa para o Estado judeu em nossos tempos. Essa discussão sobre o papel da Bíblia hoje em Israel nos leva à próxima questão: o sionismo é um movimento colonialista?
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Dez mitos sobre Israel, Ilan Pappé MOC
Gershom Scholem, De Berlim a Jerusalém, Sao Paulo: Perspectiva, 1991. ↩︎
As citações dos reformistas apresentadas a seguir foram extraídas de uma avaliação de seu posicionamento, crítica e pró-sionista, mas ao mesmo tempo muito informativa, que inclui o documento na íntegra. Ver Ami Isseroff, “Opposition of Reform Judaism to Zionism: A History”, 12 de agosto de 2005, disponível em: <zionism-isracl.com>. ↩︎
Walter Lacquer, The History of Zionism, Nova York: Tauris Park Paperback, 2003, pp. 338-98. ↩︎
O trabalho mais recente sobre o movimento é Yoav Peled, Class and Ethnicity in the Pale: The Political Economy of Jewish Workers’ Nationalism in Late Imperial Russia, Londres: St. Martin’s Press, 1989. ↩︎
M. W. Weisgal e J. Carmichael (eds.), Chaim Weizmann: A Biography by Several Hands, Nova York: Oxford University Press, 1963. ↩︎
Elie Kedourie, Nationalism, Oxford: Blackwell, 1993, p. 70. ↩︎
Shlomo Avineri, The Making of Modern Zionism: Intellectual Origins of the Jewish State, Nova York: Basic Books, 1981, pp. 187-209. ↩︎
O livro pode ser baixado de graca em jewishvirtuallibrary.org. ↩︎
Ver Eliezer Shweid, Homeland and the Promised Land, Tel Aviv: Am Oved, 1979, p. 218 (em hebraico). ↩︎
Micha Yosef Berdichevsky, “On Both Sides”, citado em Asaf Sagiv, “The Fathers of Zionism and the Myth of the Birth of the Nation”, Techelt 5 (1998), p. 93 (em hebraico). ↩︎
Um bom debate sobre essas opções pode ser encontrado em Adam Rovner, In the Shadow of Zion: Promised Lands Before Israel, Nova York: NYU Press, 2014. ↩︎
Um excelente resumo desse argumento, com as referências adequadas, pode ser encontrado no artigo de Stephen Sizer “The Road to Balfour: The History of Christian Zionism”, disponível em: <balfourproject.org>. ↩︎
Ingrid Hjelm e Thomas Thompson (eds.), History, Archaeology and the Bible, Forty Years after “Historicity”, Londres e Nova York: Routledge, 2016. ↩︎
Ilan Pappe, “Shtetl Colonialism: First and Last Impressions of Indigeneity by Colonised Colonisers”, Settler Colonial Studies, 2:1, 2012, pp. 39-58. ↩︎
Moshe Bellinson, “Rebelling Against Reality”, in: The Book of the Second Aliya, Tel Aviv: Am Oved, 1947 (em hebraico), p. 48. Esse livro é a compilação mais extensa ja publicada de diários, cartas e artigos da Segunda Aliyah. ↩︎
Yona Hurewitz, “From Kibush Ha-Avoda to Settlement”, in: The Book of the Second Aliya, ibid., p. 210. ↩︎
Ilan Pappe, “The Bible in the Service of Zionism”, in: Hjelm and Thompson, History, Archaeology and the Bible, pp. 205-18. ↩︎
Para uma discussão sobre esses trabalhos e a inserção inicial do paradigma colonialista nas pesquisas sobre o sionismo, ver Uri Ram, “The Colonisation Perspective in Israeli Sociology”, in: Ilan Pappe (ed.), The Israel/Palestine Question, Londres e Nova York: Routledge, 1999, pp. 53-77- ↩︎
Michael Prior, The Bible and Colonialism: A Moral Critique, Londres: Bloomsbury, 1997. ↩︎
Essas questões são debatidas com profundidade em um excelente livro que, por infortinio, s6 esta disponivel em hebraico: Sefi Rachlevsky, The Messiah's Donkey, Tel Aviv: Yeditot Achronot, 1998. ↩︎
O comentario figurou de sua pagina do Facebook em 1° de julho de 2014, e foi amplamente citado na imprensa israelense. ↩︎
Citado em Jonathan K. Crane, “Faltering Dialogue? Religious Rhetoric of Mohandas Ghandi and Martin Buber”, Anaskati Darshan, 3:1 (2007), pp. 34-52. Ver também A. K. Ramakrishnan, “Mahatma Ghandi Rejected Zionism”, The Wisdom Fund, 15 de agosto de 2001, em tw/.org. ↩︎
Citado em Avner Falk, “Buber and Ghandi”, Ghandi Marg, ano 7, outubro de 1963, p. 2. Muitos sites, como o Ghandi Archives, também apresentam o diálogo completo. ↩︎
The People of Israel in their Land: From the Beginning of Israel to the Babylonian Exile foi publicado em hebraico em 1936, e um segundo volume, Israel in Exile, em 1946. ↩︎
Martin Gilbert, Atlas of the Arab-Israeli Conflict, Oxford: Oxford University Press, 1993. ↩︎
A carta esta disponivel no site do Ministério, com data de 29 de novembro de 2014. ↩︎
Tom Segev, One Palestine, Complete, Londres: Abacus, 2001, p. 401. ↩︎