Por que os ricos não fazem greve? - Que são os ricos?
Que são os ricos?
-- Álvaro Vieira Pinto
NAS FORMAS MAIS PRIMITIVAS DE EXPLORAÇÃO DA natureza, sendo extremamente rudimentares os instrumentos produtivos, a sociedade assumia a modalidade de organização comunitária, não havendo propriedade individual desses meios de produção. O que se produzia era imediatamente consumido por todos os membros da comunidade em igualdade de condições . A falta de excedentes, por força da precariedade dos recursos com que trabalhar a terra ou caçar os animais, impunha a eqüidade da situação econômica de todos os homens, não havendo evidentemente sobras que pudessem permanecer na posse de alguns indivíduos mais fortes ou mais espertos, para impor aos outros o seu domínio. Esta situação, que foi a da humanidade primitiva durante milênios, modifica-se com a melhoria dos instrumentos da produção, determinando a passagem a novas formações sociais, nas quais começa a se tornar possível a acumulação de excedentes e a propriedade privada desses bens. É claro que quando isso começa a acontecer a sociedade se divide, perde a homogeneidade inicial, e surgem a figura dos aproveitadores da riqueza coletiva e a dos que aos poucos vão caindo no estado de penúria e servidão.
Não cabe aqui descrever o processo histórico que, ao longo de sucessivas formações sociais, conduziu a sociedade ocidental, européia e americana, até as formas atuais do capitalismo e do imperialismo. Por mais que se complicassem os procedimentos e se intrincassem em infinitos acontecimentos, o processo que em todos os tempos conduziu ao aparecimento dos "ricos" permaneceu o mesmo em sua essência. Só há ricos porque existem condições sociais que permitem a espoliação do trabalho coletivo efetuado por todo o povo, representado pela acumulação e apropriação dos benefícios desse trabalho nas mãos de alguns afortunados. Se estes eram de início os chefes de tribos, depois os senhores de escravos, os barões feudais, e agora são os industriais, comerciantes e banqueiros, isto em nada altera a essência do processo que determina o aparecimento da "riqueza", entendida como vultosa propriedade pessoal de bens, em dinheiro, terras, máquinas ou objetos de luxo e conforto . Em todos os casos a "riqueza" decorre da exploração do trabalho das grandes massas, que se vêem despossuídas da maior parte dos bens sociais que produzem, relegadas ao plano da miséria, quer mantidas como escravas, na modalidade da antiga escravatura, quer como assalariadas, na modalidade atual. O povo, a imensa maioria da população permanece em estado de pobreza porque, embora seja o possuidor da força de trabalho que cria a riqueza não é possuidor; dos resultados do seu trabalho. De tal maneira, nos regimes sociais onde não há efetiva propriedade social dos meios de produção, onde o povo em totalidade não é senhor dos instrumentos de trabalho, instala-se necessariamente o desnível social, a riqueza cada vez mais excessiva de alguns ao lado da pobreza, também cada vez maior, da imensa maioria do povo.
Mesmo esboçadas nestas linhas simplíssimas, as reflexões anteriores permitem compreender vários aspectos da realidade social de nosso País, que a seguir enumeramos:
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a) os "ricos" são poucos . Esta consideração, aparentemente trivial e óbvia, adquire grande importância quando a aprofundamos na perspectiva da análise sociológica. Necessariamente têm de ser poucos, pois são aqueles que, por variados meios, se apropriam da riqueza geral. Mas, não só são poucos, como, no processo evolutivo do capitalismo, tendem a ser cada vez "mais poucos", no sentido em que tal processo acarreta o aumento do número daqueles que empobrecem em proporção maior do que a daqueles que ingressam na categoria dos "ricos".
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b) se os ricos são poucos, a questão que logo se apresenta é saber por que artes estes poucos conseguem se manter como endinheirados exploradores das massas trabalhadoras infinitamente mais numerosas. Então o povo não percebe que é pobre, e ao mesmo tempo não compreende que representa a quase totalidade da população do país atrasado? Como então aceita continuar neste estado de coisas que o prejudica? Por que não se reune e com um simples e fácil gesto expulsa o insignificante grupo de aproveitadores do trabalho? A resposta a estas questões conduz-nos a indagar dos mecanismos de que os ricos lançam mão para manter sob domínio as massas empobrecidas. Se analisarmos em profundidade o assunto chegaremos a entender que, ao contrário do que pareceria à primeira vista, não é fácil aquele gesto que se poderia supor estar sempre ao alcance do povo praticar. É que o mecanismo da espoliação, que gera e sustenta a classe dos "ricos", não se deixa vencer facilmente, mesmo quando as massas chegam a ter perfeita consciência dele.
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c) e por que isso acontece?• Porque a posse da riqueza por uma classe social, embora diminuta, se acompanha de todo um sistema de dominação, material e ideológico, sobre as populações exploradas, que torna não apenas extremamente difícil a ruptura material dos grilhões que as acorrentam, como ao mesmo tempo atua no sentido de impedi-las de compreender a existência, a natureza e as causas desses grilhões. A submissão do povo podia; até bem pouco, ser conseguida com a quase completa passividade dele, diríamos mesmo com a sua indiferença ou até complacência. Isto porque entre os mecanismos de dominação figuram em primeiro lugar, pela importância dos resultados, a repressão a qualquer surto de consciência das massas, que acaso venha a lhes revelar a realidade de sua situação. A posse da riqueza econômica assegura à classe, assim tornada dominante, a aliança com os criadores das influências ideológicas, — sacerdotes, legisladores, magistrados, deputados, professores, jornalistas, artistas, intelectuais em geral, — e os faz se colocarem naturalmente a serviço do senhor de escravos, do latifundiário feudal ou do industrial capitalista. Tais influências, — as crenças, a política, as artes, as ciências sociais comprometidas com os senhores e com o imperialismo, — desempenham formidável efeito paralisador sobre a consciência das massas; impossibilitando-as de adquirir a visão correta da sua mesma realidade. A divisão da sociedade em "ricos" e "pobres" se acompanha de outra, a divisão entre elites intelectuais cultas e plebe ignorante.
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d) o artifício primordial e o mais eficaz para conservar o domínio dos "ricos" está em conservar paralelamente a divisão entre minorias cultas e massas incultas. Trata-se de fazer crer às massas que não dispõem de condições para se pensarem a si próprias, conhecerem as causas do seu estado, porque são incultas e analfabetas. Este é o sortilégio fatal que a elite alienada procura lançar sobre o povo, pois enquanto tiver efeito estará assegurada não só a superioridade da "cultura" de tais elites, como a preponderância da classe rica a que servem. este fascínio, porém, só dá resultado enquanto as massas se encontram em fase de extrema pobreza, jungidas a um trabalho primitivo, penoso e sem perspectivas, porquanto é em tais condições que lhe faltam suportes objetivos para o surgimento de sua consciência de si, sendo então presa fácil dos sedutores que as procuram consolar com enganosas promessas ,de "felicidade eterna na vida futura" ou, na versão mais moderna, com a "participação nos lucros da empresa". Enquanto o trabalho do país pobre for feito por massas ignorantes, em virtude dessas mesmas condições de trabalho, o papel dos instrumentos de dominação ideológica torna-se decisivo . Os "ricos" não enganam diretamente os "pobres"; pagam aos sacerdotes e aos intelectuais para fazerem esse serviço.
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e) mas não é só o transvio da consciência que explica a passividade das multidões humilhadas e sua submissão a um simples punhado de arrogantes e insensíveis exploradores. Esse meio por si só não bastaria, pois com a própria intensificação da exploração do trabalho, exigindo melhores recursos técnicos e conhecimentos sobre a realidade, iria se desenvolvendo a consciência do "pobre", e em breve chegaria ao ponto de compreender a sua situação. Torna-se imprescindível igualmente o emprego da força material para conter a massa na obediência, no silêncio, na exploração. Aí então os ricos assumem diretamente o comando do mecanismo do domínio social. Desde as antigas hostes mercenárias até às modernas organizações policiais e às Forças Armadas dos países imperialistas, os ricos sempre dispuseram de suficiente poder material para reprimir qualquer insubordinação que acaso as massas camponesas ou urbanas manifestassem. Nesta linha de ação o sacerdócio e a "inteligência" desempenham apenas função colateral, de simples apoio ideológico, descobrindo e divulgando motivos que justifiquem como razoável a conduta brutal dos poderosos contra os indefesos. Mas o comando direto fica, neste caso, retido pelos grandes senhores de escravos, de feudos ou de fábricas. Claro está que se faz necessário arregimentar a força material em organizações bélicas, polícias, exércitos, marinhas, aviação etc. Estas organizações nos países dominadores de outras nações, são diretamente dirigidas pelo poder econômico, apenas com a tênue interposição do Estado, simples disfarce político desse mesmo poder econômico.
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f) dispondo de tão formidável recurso de compressão social pela força, os "ricos" acreditam que lhes está definitivamente assegurado o "status" de que desfrutam, e que seu domínio sobre as massas pobres, embora pontilhado de incidentes, é sólido e indestrutível. Nem mesmo a experiência das nações que sacudiram o jugo capitalista lhes serve de exemplo, exibindo um tipo de sociedade onde a distinção entre ricos e pobres deixou de existir. Não se emendam com essa verificação, nem afrouxam as tenazes da exploração, porque seus interesses são mais fortes que sua inteligência, e porque a conivência espúria com os intelectuais, que os adulam e parasitam, os faz sucumbir aos feitiços que preparam para os pobres, acabando por acreditar na perenidade do seu domínio. Este solerte argumento, confeccionado para anestesiar a consciência das massas, acaba por paralisar a dos próprios dominadores, levando-os a crer sinceramente na segurança e validade do que chamam os "seus direitos".
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g) deste modo, a qualquer indício de agitação popular, de reclamação das grandes massas trabalhadoras, camponesas ou urbanas, revidam pondo em ação o poderoso mecanismo compressor que possuem: de um lado, o desarmamento ideológico da consciência popular nascente, pela ação do púlpito iludidor, da imprensa venal, do magistério alienado, das cúpulas sindicais corrompidas etc.; de outro lado, pelo esmagamento material, físico, das tentativas de rebelião, pelo aprisionamento, violências corporais e assassínio.
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h) os "ricos" não se julgam ricos . Por dois motivos: primeiro, porque nunca lhes parece que a fortuna que possuem seja suficiente; e segundo, porque só reconhecem como "ricos" os outros mais ricos do que eles Deste modo, o "rico" transfere sempre para um outro "rico" — aquele único que reconhece como tal — os problemas morais e sociais que o privilégio da riqueza efetiva cria para ele. Assim, do ponto-de-vista do 'rico", nunca esses problemas são dele.
Explica-se desta maneira por que os ricos podem ser poucos e contudo submeter ao seu talante imensas populações, que se deixam explorar por eles. A causa principal deste estado é a falta de clara consciência da exploração, ou a crença em motivos julgados respeitáveis pelo próprio explorado, para aceitá-la. Este aspecto do problema tem valor capital: a consciência de ser vítima da exploração econômica de uma classe social dominante só começa a surgir e a clarificar-se quando o trabalho das massas alcança certo grau de desenvolvimento, dentro da respectiva formação histórico-social. Na etapa de total empobrecimento e servilismo, trabalhador acha-se de tal modo ocupado na faina primitiva e permanente que executa para manter-se vivo, que se encontra como que "colado" ao trabalho manual extenuante e explorado. Em tal estado o trabalhador é praticamente um animal irracional, o "burro de carga" de que fala a linguagem popular. Mostra-se incapaz do mínimo de abstração exigido para se ver a si próprio como ser humano destacado da natureza em que se acha incluído pelo trabalho que realiza. Não chega a se pensar a si mesmo, a refletir sobre a sua situação, mas se o fizesse, concluiria que sua realidade pessoal se acha envolvida pela realidade material onde se encontra, inseparavelmente ligada a esta pelas relações físicas e sociais que o acorrentam à existência que leva. Toma essa existência como fato natural, e mesmo quando o espírito reaja às insuportáveis condições de vida, tal reação é meramente sensitiva, como a de uma montaria chicoteada, no máximo desperta subjetivamente estados de indignação e revolta de caráter apenas emocional. De todo modo, é incapaz em tal estado de refletir sobre si, o que, se acontecesse, daria início ao processo de descoberta das causas objetivas do seu sofrimento.
Ocorre que também nessa etapa rudimentar da consciência das massas contribuem para entorpecê-las e confundi-las as pregações de teólogos, filósofos e sociólogos que engendram toda espécie de doutrinas, logo divulgadas em chavões ao alcance da compreensão popular, nos quais se declara ser a divisão da sociedade em "ricos" e "pobres" um fato natural, permanente, irremovível. Uns a explicarão por efeito da vontade divina, que impôs ao homem a desigualdade social, o trabalho fatigante, a dor e a morte; dirão, como súmula dessa enganosa e interesseira doutrina, que: "Sempre houve ricos e pobres, e sempre haverá". Ao divulgar esta fórmula ignominiosa prestam o melhor serviço à classe exploradora, pois dissipam na consciência dos trabalhadores a crença na possibilidade de um futuro radioso, livre de exploração e de miséria. Compelem as massas a concluir que de nada valem os seus esforços, suas lutas para sacudir o peso dos opressores, pois no máximo conseguiriam trocá-los por outros, uma vez que "ricos sempre haverá". Mas não são apenas os teólogos ou os filósofos os autores deste insidioso malefício . Na época moderna, desde a criação das ciências naturais, numerosas teorias foram expostas, por sábios a serviço dos grupos dominantes, que em linguagem erudita, às vezes extremamente complexa, valendo-se das ciências econômicas, das estatísticas, da demografia, e de diversos ramos da sociologia, procuram chegar ao mesmo resultado: a santificação da ordem capitalista atual, declarada eterna em essência e em validade, embora variável nas formas em que se desenrola no tempo. Ora, o que é defendido como eterno nessa ordem é precisamente a divisão da sociedade entre ricos e despossuídos. Pouco importa que para justificar tal situação se invoquem complicadas teorias sobre a função progressista do capital, o crescimento "explosivo" da população, as vantagens da concentração da riqueza, tudo isto acompanhado de hipócritas argumentos que "demonstram" não ser nociva às massas a ordem atual.
A exploração do trabalho constitui a origem do lucro que se acumula como riqueza nas mãos dos capitalistas. Ora, é uma lei não apenas psicológica, mas econômica, objetiva, que o capitalista procura tornar cada vez maior o lucro que obtém pelo uso dos instrumentos produtivos de que é possuidor. Para isso, faz-se necessário em primeiro lugar intensificar ao máximo a exploração do trabalhador, para dele retirar o máximo rendimento. Mas é preciso também desenvolver qualitativamente as forças produtivas, ou seja, fazer o trabalho mudar de qualidade, passando dos níveis inferiores para formas mais elevadas, mais rendosas. O abandono da manufatura e o progresso na produção industrial, e, já nesta fase, a passagem da etapa da mecanização atrasada para outra de utilização de maquinarias cada vez mais complicadas, constitui imposição da natureza do desenvolvimento econômico capitalista. A melhoria do maquinismo tem de ser acompanhada de paralela alteração qualitativa do trabalhador, que não pode mais ser o rústico manejador da enxada, da carroça de tração animal, ou das máquinas grosseiras do começo da era industrial, para se tornar o especialista dotado de completo discernimento sobre as operações que efetua. Tal mudança nas condições de trabalho reflete-se na consciência do operário em forma de mudança qualitativa na sua percepção do mundo e de si mesmo . Não só é obrigado, para dar maior rendimento ao patrão, a ser mais instruído, alfabetizado, conhecedor de certos fatos do processo material que pratica, como tem de juntar-se a outros companheiros para o desempenho das operações do trabalho, e isto lhe oferece novas relações sociais, sobre as quais igualmente tem de meditar, relações que associam grupos de trabalhadores cada vez mais extensos. O surgimento de nova consciência nas massas operárias, e de uma consciência que rapidamente chegaria a decifrar o mistério da sua pobreza, não tardaria, seria impetuoso e irresistível, pondo término à atual ordem de coisas, se não interviessem, como dissemos, nessa etapa os procedimentos desviadores e entorpecedores, que atuam no sentido de obscurecer e transviar a consciência nascente.
A ideia de que a produção dos bens de que a sociedade necessita terá de ser feita sempre nos moldes capitalistas, ou seja, que a divisão entre capital e trabalho é justa e definitiva, não exerce ação paralisante apenas sobre a consciência do operário, mas igualmente sobre a do capitalista. Dá-lhe a ótica social através da qual vê toda a realidade e sua própria situação existencial. A posse do capital, da riqueza, é por ele interpretada como especial e superior modo de ser humano, distinto daquele que define a parte restante da humanidade. A força de pagar aos seus jurisconsultos para incutirem nas massas a idéia dos "seus direitos", acaba por acreditar neles, e se torna assim vítima do engano que agenciou para os outros. O direito à riqueza que os pensadores áulicos proclamam, passa a ser entendido como o direito da riqueza. E, então, não se julga tão somente um premiado pela sorte no páreo em que todos os homens supostamente figuram em pé de igualdade na conquista da fortuna, mas um predestinado por já havê-la conseguido. Sendo rico, cabem-lhe agora destacado papel e graves responsabilidades no conjunto da sociedade . Em primeiro lugar, honra-se de o ser . Ou porque pessoalmente tivesse amontoado a riqueza que possui ou porque a tivesse herdado de antepassados, a legitimidade da sua posição excepcional lhe parece indiscutível. Justifica-a como fruto do trabalho, seu ou dos avós, com o que mais se engrandece, pois associa o valor moral ao financeiro que possui. Não acredita na pura sorte, no máximo considera-a uma favorável. oportunidade que soube aproveitar à custa do trabalho, o que demonstra não apenas tenacidade, honradez, justiça, mas ainda inteligência e capacidade criadora. A consciência do rico é cercada por um cordão de isolamento por ela mesma disposto para racionalizar a sua existência e atividade. Não lhe basta valer socialmente como pessoa, em virtude do poder econômico que detém; quer valer também moralmente, para apaziguar quaisquer eventuais escrúpulos motivados pelos atos que pratica nas suas relações com os assalariados, e também para refutar as críticas que recebe dos porta-vozes da consciência oposta. Sabe que existem pensadores que interpretam a realidade de um ponto-de-vista diferente do seu, que exprimem o modo de ver das massas trabalhadoras, mas não se inquieta particularmente com o conteúdo teórico das afirmações destes opositores; mais lhe interessa aparecer como pessoa moralmente limpa. Explica-se este procedimento porque realmente só lhe interessa justificar-se perante os membros da classe média ou diante dos seus convivas da classe endinheirada, para os quais a suprema ignomínia não está no enriquecimento enquanto tal, mas na ilicitude dos meios empregados para enriquecer. Por isso corteja com avidez os que lhes possam elogiar os dotes morais, a nobreza de caráter, a honestidade nos negócios, a fidelidade à palavra dada, e até mesmo a liberdade e munificência em atender às necessidades das classes sofredoras, criando fundações, hospitais, orfanatos, colégios, e todas as demais obras pias, formas de exercício de caridade para com os "pobres".
É impossível compreender a visão do mundo peculiar ao rico sem adiantar que o seu traço mais característico é a exigência de valor moral. Supõe — e disso muito se orgulha — que subordina tudo em sua vida, os negócios e transações, antes de mais nada as exigências morais a maior das quais é a honestidade. Não percebe que procede exatamente às avessas, pois só considera como "moral" o conjunto de valores que dão cobertura às operações econômicas que pratica e às relações sociais que o beneficiam. Assim, por exemplo, o que chama de "honestidade" é simplesmente a tradução em idioma ético do conceito financeiro de "crédito bancário".
Não basta porém aos ricos justificar moral e economicamente a riqueza que possuam, é necessário igualmente explicar a "pobreza" das massas. Excetuando a verdadeira explicação, qualquer outra que os sociólogos, filósofos, teólogos e economistas lhes ofereçam é acolhida com entusiasmo. Desde as de natureza psicológica, apelando para a preguiça da massa, de natural indolência em "trabalhar duro" para "se fazer alguém", até as que recorrem a supostos fatores naturais como "raça", "clima", passando pelas que invocam a "ignorância natural" ou o "castigo divino", todas as teorias alienadoras são bem recebidas, pois o único fito de tais lucubrações resume-se em tranquilizar a consciência moral das classes abastadas. Se a pobreza é tão "natural" quanto a riqueza, então podem dormir em paz consigo mesmos, pois não há crime a lhes ser imputado, a exploração do trabalho dos assalariados, de que falam certos agitadores, não passa de maliciosa invencionice, destinada a perturbar a ordem pública em proveito de pequeno grupo de ambiciosos e invejosos desajustados . O rico não vê no pobre um adversário, não o considera membro de uma classe antagônica da sua, porque isso seria supor que admitisse a teoria que exatamente repudia; apenas vê nele o representante do caso geral da grande maioria da humanidade, que vive a natural condição de mediocridade financeira, muito justificável porque nem todos são capazes da façanha que ele próprio conseguiu realizar. A não ser nos casos de extrema miserabilidade, dos quais sinceramente se condói, — e por isso procura remediar, — a exigüidade dos recursos econômicos 'da imensa massa humana parece-lhe fato natural, admite ser a condição "de todos", condição que seria a dele mesmo se não se tivesse destacado do vulgo pelo esforço honesto ou pela inteligência mais viva aplicada em descobrir rendosas transações. Seu ideal social não pode ser, é claro, a igualdade da fortuna para todos os membros da sociedade, o que julga romântica utopia ou malévola propaganda. Contudo, não escarnece publicamente da pobreza, nem deseja conservá-la nas formas odiosas em que agora se apresenta. Sabe que a sociedade está mal organizada, que há excessos de riqueza, (embora esse nunca seja o seu caso pessoal) ao lado de monstruosas manifestações de pauperismo. Concorda em que é preciso por um paradeiro a este estado de coisas . Por isso ninguém mais do que ele admite, acata, e até encomenda, projetos de reforma social aos seus subservientes filósofos, sociólogos e economistas. Neste momento, por exemplo, está convencido de que se fazem necessárias no Brasil reformas não apenas de superfície, mas "de base", "radicais", pois do contrário as inquietações sociais chegarão ao ponto explosivo . Movido por generosos impulsos quer remediar a tão graves situações, e se declara o primeiro a aceitar modificações substanciais na ordem vigente, a fim de "tornar os ricos menos ricos e os pobres menos pobres", ou, noutra variedade do mesmo chavão, de "dar mais aos que têm pouco tirando um pouco dos que têm muito". Os estribilhos desta espécie são inúmeros e servem de fecho de ouro para os arroubos retóricos dos tribunos primários em campanha eleitoral. Os ricos são os primeiros a concordar com essas "ousadas" proposições, e a se declararem favoráveis a reformas de "base" que obviem os atuais desníveis econômicos não apenas entre classes sociais mas igualmente entre regiões do mesmo país. Os politicos representativos da classe dominante, ainda os mais reconhecidamente reacionários, são hoje concordes em que se fazem imprescindíveis algumas medidas que atenuem as disparidades sociais.
Mas a este respeito duas tendências ideológicas se vão manifestar, entrelaçando-se às vezes, ambas características da mentalidade da classe dominante, exprimindo na palavra dos seus oráculos intelectuais e representantes parlamentares ou governamentais os mesmos preconceitos de classe, ou seja os mesmos interesses de continuação do domínio dos grupos financeiros: a primeira, a que deseja as reformas de base desde que evidentemente não comprometam a atual estrutura social, reformas visando apenas a conciliar o capital com o trabalho; a segunda, a que confia na caridade como único procedimento social adequado, sério, útil e eficaz para resolver a penosa situação das, classes trabalhadoras ou das massas lançadas no marginalismo da afrontosa miséria, e acredita que a esmola constitui valioso, nobre e indispensável recurso para resolver o que chama de "questão social".
O recurso à caridade "cristã" representa poderoso processo de que os "ricos" se valem para apaziguar a sua consciência de exploradores, bem como traz-lhes a vantagem de anestesiar a compreensão dos "pobres" sobre a realidade em que vivem. Nada é mais hipócrita, anti-social, anti-humano do que a caridade, tal como a entendem e praticam os endinheirados. Supõem que se trata de uma "virtude evangélica", quando na verdade consiste em afrontosa injúria à condição das massas espoliadas. Só tem efeito porque esse gesto desumano é organizado e abençoado por instituições religiosas que se tornam cúmplices da exploração dos trabalhadores, ao exortar os ricos a praticarem a "boa ação" de dar insignificantes quantias aos miseráveis que os assediam. A esmola, sob qualquer forma, — de chás de beneficência, heranças a educandários e instituições pias, manutenção de hospitais e creches, Bancos da Providência etc., — é sempre um gesto anti-social, que deve ser repudiado pela consciência das classes trabalhadoras pelo que tem de insultuoso, pois significa não admitir que as massas por si só possam resolver os seus problemas, e pelo que representa de mistificação e engodo, pois supõe que o povo seja capaz de se deixar iludir e compactuar com o estado de espoliação a que se acha submetido. Nada adiantará às classes dominantes terem a seu serviço o aparelho do Estado, a imprensa, o poder econômico, o capital sob todas as espécies, a Universidade, o púlpito e todos os que se aninham na situação vigente; tudo isso de nada lhes valerá se a força que os sustenta está habitada por uma íntima contradição, que não se acha ao alcance delas resolver a seu favor: a contradição entre a riqueza dos poderosos, como resultado da apropriação do trabalho não pago aos trabalhadores, e a pobreza das massas, agora tornada um dos elementos componentes de sua consciência de si.
A inevitável derrocada da camada de ricos industriais, banqueiros e latifundiários cumprir-se-á como conseqüência do surgimento dessa consciência que não está em poder dos magnatas impedir que se constitua, mas ao contrário que eles de certo modo — contraditoriamente — estimulam, quando impõem maior rigor na exploração do povo. Falta-lhes, é claro, a compreensão deste fato. Julgam que os recursos opressivos, ideológicos ou policiais, são suficientes para se contraporem ao surto de pensamento entre as massas e esmagar as agitações que sobrevenham. Não percebem, por falta de visão teórica adequada, que toda violência feita à consciência nascente converte-se em novo ensinamento, que esta recolhe, com o qual se enriquece, e que a faz progredir em vez de esmagá-la ou emudecê-la. Ao sofrer a dureza da repressão material, desde as limitações à liberdade de expressão, até às prisões e mesmo o assassinato, a consciência do povo sente-se levada a indagar da causa destes acontecimentos e chega a descobrir-lhes, com facilidade, a origem no desejo das classes economicamente dominantes de manter os privilégios sociais. A violência dos poderosos constitui a grande escola dos oprimidos, porque ensina às massas trabalhadoras a refletir sobre o significado, a essência e as condições do trabalho que executam. Deste modo, passamos naturalmente ao tema da greve, por uma transição lógica de reflexões. Da noção dos "ricos" como classe aproveitadora do trabalho nacional, fomos conduzidos a verificar os procedimentos de que tal classe se vale para manter sua situação; ao descobrir que a violência sobre o povo é inseparável do exercício do poder pela classe dominante, compreendemos que essa violência só tem um objetivo, fazer os trabalhadores trabalharem para que os patrões desfrutem de vida melhor que a que levam. Mas, ao mesmo tempo verificamos que a violência abre uma escola de consciência, e suscita a reflexão sobre a natureza do trabalho, os direitos do operariado, entre estes, a possibilidade de resistir às injustiças, espoliações e maus tratos de que é vítima. Sociologicamente, uma das manifestações mais importantes dessa resistência, e, portanto, uma das expressões mais sensíveis da luta social entre os assalariados e seus empregadores é aquela representada pela greve. A esse fenômeno social, pois, dedicaremos as reflexões que se seguem.
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