Por que os ricos não fazem greve? - Por que há "ricos"?
Por que há "ricos"?
-- Álvaro Vieira Pinto
NAS DIVERSAS DIVISÕES DO TRABALHO QUE A EVOlução do processo econômico impôs à humanidade, desde o seu alvorecer, só a partir de certa fase começa a se distinguir no conjunto da sociedade um tipo particular de diferenciação, que conduz à formação de classes de indivíduos, uma das quais se caracteriza por adquirir o poder sobre os meios de produção e, como resultado disso, a dispôr em proveito próprio dos resultados do processo produtivo . Embora este seja feito pela sociedade, como um todo, os bens a que dá origem não se tornam propriedade de todos aqueles que os produziram, mas são arrebatados por pequeno número de indivíduos, os quais, pela força física ou pela coação ideológica, conseguem sobrepujar os demais. A sociedade, depois de dividida em classes antagônicas, contém necessariamente uma que cabe designar com o termo genérico de "os ricos". Por mais amplo que seja o sentido em que se empregue o conceito de riqueza, por mais razoáveis que sejam as formas de que se pretenda revestir as justificativas da superioridade econômica de alguns poucos, a verdade é que, em essência, a riqueza, na sociedade dividida em classes inimigas, deriva sempre da apropriação do trabalho alheio. Não há explicação válida que encubra este fato ou lhe atenue o aspecto repulsivo.
Foi preciso muitos séculos decorrerem, muitos pensadores se ocuparem desta questão, para finalmente se ter a clara noção do caráter histórico das desigualdades econômicas, que, de tão duradouras, no curso do tempo, pareciam a muitos naturais e, portanto, definitivas . Na fase da evolução do pensamento humano, em que ainda não era possível discernir a origem das disparidades sociais, os pensadores, sobretudo por influência de preconceitos teológicos, acreditaram que esse estado fosse o próprio estado normal da humanidade, assim desejado pela divindade, imposto aos homens como castigo por um crime originário. A aceitar esta hipótese, — o trabalho considerado punição divina, — os "ricos" não só já estariam "salvos", pois se teriam livrado das conseqüências do pecado, como até deveriam ser julgados seres superiores, sobre-humanos, desde que os "homens" se definiriam pela condição de suportar as decorrências 'do pecado original, entre as quais se contaria a obrigação de ganhar o pão com o suor do corpo, ou seja, com o trabalho a serviço dos que não precisam suar. Vê-se que por trás do erro e da ingenuidade desta explicação se oculta alguma coisa mais do que simples ignorância ou infantilismo intelectual: oculta-se a relação que as teorias desta espécie mantêm com os interesses desses chamados "ricos".
Outros pensadores, parecendo mais esclarecidos porque libertos das preocupações teológicas, vão contudo incidir em equivalente incompreensão e prestar os mesmos serviços à classe dominante, quando proclamam que a conquista da riqueza foi fruto da arguta inteligência de alguns poucos, aliada a excepcional atividade. Requerendo um conjunto de qualidades raramente verificado, somente pequeno punhado de homens é capaz de se destacar da inércia e passividade da massa, e de se sobrepor aos demais, captando, assim, para si, com justo motivo, os proventos do trabalho geral. Preferem estes pensadores, como vemos, a explicação psicológica. Seriam a astúcia de uns poucos, a extraordinária capacidade de ação de uma minoria, que determinariam a divisão da sociedade, e a manteriam permanentemente, pois sempre haverá diferença de aptidões entre os indivíduos . Na disparidade 'dos dotes intelectuais e da vocação para a atividade e não na forma material assumida pelo processo econômico da sociedade, residiria a origem da riqueza acumulada nas mãos de alguns poucos . A riqueza, além do significado material, conteria um aspecto ético. Não basta ao "rico" viver bem; quer ser, por isso, honrado . Esta palavra se desdobra num duplo sentido: honrado, isto é, respeitado, venerado, pelo fato de ser possuidor da riqueza; e, em segundo lugar, honrado por ser o portador de um valor ético positivo, a honra. Dêste modo, a riqueza se constitui em padrão moral, se identifica à honorabilidade, e vai ser o fundamento da ética da classe que a possui . O "rico" não se contenta em roubar o trabalho do "pobre"; deseja impor-lhe também o código de moralidade que consulta exclusivamente os seus interesses de classe apropriadora dos bens sociais. Por efeito de tal imposição ideológica a classe trabalhadora fica despojada do direito de criar seus próprios padrões de valor, pelos quais, evidentemente, julgaria com severidade os seus oponentes.
Os "ricos", desta maneira, não se apresentam apenas como ricos, mas também como "bons". São a parte honrada, glorificada, "boa", da sociedade. Donde exigirem respeito dos que não estão no mesmo nível. E porque são "bons", nesse valor fundam a concepção das relações e atitudes que devem manter com os não-ricos, os trabalhadores . A sociologia da esmola não tem, conforme talvez parecesse um princípio arbitrário, subjetivo, mas se fundamenta na crença da classe dominante de que somente ela é "boa", e que por isso lhe incumbe, entre as numerosas virtudes que pratica, atender às necessidades dos "pobres", socorrê-los "na medida do possível", distribuir com eles o "excesso dos seus bens", e muitas outras ações abençoadas pelas corporações sacerdotais. Com o apelo a estas práticas caridosas julgam os teólogos resolver a questão social. Exortam os "ricos" a que socorram os "pobres", e chegam a indicar que, no fundo, este é um ato que ainda mais os enriquece, só que agora, de bens espirituais. De fato, ao comparecerem a um espetáculo de caridade em favor de uma instituição pia, um orfanato ou um asilo, as senhoras da sociedade estão acumulando uma espécie particular de fortuna, a espiritual, de que irão gozar na "outra vida", enquanto aos "pobres" não é dada a mesma oportunidade de enriquecimento moral, pois não podem ir a essas reuniões. É verdade que a eles é oferecida outra possibilidade de enriquecerem moralmente: trabalhar mais, com maior afinco e submissão em favor do patrão, praticar as virtudes da modéstia, da prudência e da frugalidade. Este é o caminho onde devem colher os merecimentos que irão desabrochar em graças sobrenaturais futuras.
Os "ricos" não se julgam seguros com as garantias que lhes oferecem as simples teorias sociológicas difundidas no espírito das massas. Necessitam institucionalizá-las, criando corporações de intelectuais a seu serviço para manter permanente vigilância contra o eventual despertar da consciência do povo. Apóiam organizações eclesiásticas, criam estabelecimentos de ensino, sustentam academias e universidades, executam por todos os modos a política de enfeitiçamento ideológico, para que tais teorias surtam o desejado efeito. Uma única coisa lhes importa: manter a divisão social. No caminho para tal objetivo só existe um empecilho real: é o povo trabalhador descobrir a causa da sua situação de inferioridade e, de posse deste conhecimento, resolver aboli-la.
Assim sendo, a pergunta que fizemos, "Por que há ricos?", só admite uma resposta: porque as massas trabalhadoras não têm ainda consciência do significado do trabalho e não conhecem as causas da situação em que se encontram. No dia em que alcançarem esses conhecimentos, não haverá mais "ricos". A consciência das massas, uma vez esclarecida, assume necessariamente atitude revolucionária. Mas a causa dessa mudança não está nem na simples pregação das idéias, nem na disposição combativa dos poderosos para com os humildes. Não depende da exclusiva difusão das idéias, enquanto tais, pois neste caso reduziríamos a revolução a um acontecimento primordialmente subjetivo, e apenas secundariamente material. O contrário dessa maneira de pensar é que constitui a verdade. Na opressão dos "ricos", na carência dos meios de vida para as classes pobres, nos aspectos econômicos do processo objetivo, é que se encontra a causa do esclarecimento da consciência das massas. Também não há esperança de que a generosidade dos grupos dominantes consiga elevar as classes trabalhadoras ao nível de existência que as faça despertar para a verdadeira consto ciência dos seus interesses . Essa ascensão os trabalhadores a têm de praticar por si mesmos. Todos os benefícios que recebem dos senhores da produção decorrem em última instância da necessidade dos empresários contratarem melhores serviçais, operários mais aperfeiçoados para lidar com maquinismos e processos produtivos cada vez mais complexos. Mas o grau de instrução que, socialmente falando, ministram à classe trabalhadora é convenientemente dosado, para dar a ela a quantidade de conhecimentos que lhe permita movimentar as fábricas, mas não tanto que, além disso, a faça descortinar o seu papel político. Este, pelo menos, é o desejo dos "ricos". Porém a contradição está no âmago do processo, de tal sorte que o malicioso projeto da classe dominante não surte o pretendido efeito, antes conduz ao resultado oposto.
Os "ricos" acreditam que entre os poderes de que dispõem está o de controlar o ritmo de crescimento e a direção da consciência popular. Porque, entre as riquezas que possuem, conta-se a posse dos meios de difusão social das idéias, atualmente, em larga parte, procedimentos industrializados e de alta qualidade técnica, que, além dos resultados subjetivos, produzem rendimentos vultosos. De posse desses instrumentos o restante da riqueza parece assegurado contra eventual surto inconformista das massas; aí estão os exegetas arma-dos de todos os recursos técnicos para difundir as idéias que confundam o espírito do povo, e o façam duvidar das conclusões justas que expontaneamente tira das suas experiências vitais. A aparelhagem de opressão ideológica não se exerce agora graças tão somente ao prestígio social, à cultura monopolizada por pequeno grupo de letrados; faz-se por intermédio das máquinas de difusão das idéias, a imprensa, o rádio, o cinema, a televisão, que ingressam assim na categoria dos bens mais valiosos entre os que compõem a fortuna dos ricos. Na sociedade capitalista a consciência das massas tende a ser produto dos instrumentos de propaganda, que tanto podem ser utilizados para forçar a venda de um dentifrício como para incutir a crença nos benefícios da "Aliança para o Progresso". O "pobre" fala, mas em condições duplamente desvantajosas: fala a outros "pobres" e, ademais, sua voz só alcança pequeno número de ouvintes . O "rico", ao contrário, dirige-se a milhões e, sobretudo, fala aos "pobres". Nesta disparidade. está um dos mais perniciosos artifícios do domínio dos poderosos . Dirigindo-se às massas, são eles a voz dominante.
Dispondo dos meios de propagação das idéias, representados hoje por maquinismos materiais, que custam dinheiro e portanto são bens dos ricos, estes impõem às massas as noções e representações da realidade que as impedem de alcançar a verdadeira consciência de si; e não receiam ser contraditados pois não há aparelhagem semelhante em mãos dos seus adversários . Daí a certeza em que se acham de lhes ser fácil se manterem no poder, mediante a tranqüila reeleição dos seus representantes políticos. O "rico" aproxima-se dos "pobres" na hora das eleições, mas o faz valendo-se da máquina de propaganda que previamente montou, e que não pode ser anulada por outra, oposta. Aos "pobres", ao camponês ou ao operário incultos, só resta ouvir os inflamados discursos dos oradores, a eles enviados pelos partidos das classes altas, e quando muito trocarem entre si comentários irônicos. Mas é sempre na conversa de uns com outros, pois o pobre não fala ao rico, por enquanto. Daí a repousante quietude em que a classe rica se permite discutir os problemas dos pobres. O principal motivo dessa tranqüilidade é a certeza — que os ideólogos a seu serviço se encarregam de manter e reforçar — de que sempre haverá pobres e ricos. Por isso, a situação de "ricos" aparece-lhes corno fato normal, nada revoltante, resultado de leis eternas e imutáveis da sociedade; não têm motivos de preocupação quanto à sua existência como classe. O problema de cada rico cifra-se em conservar-se pessoalmente dentro da camada dos "ricos". Não ignora que sua situação pessoal está sempre sujeita a riscos, por força da concorrência capitalista, que constantemente joga pela borda vários tripulantes, mas a existência da camada dos ricos, essa, a seus olhos, é permanente, não oferece motivo a qualquer inquietação.
A divisão da sociedade sendo imutável, o que importa a cada capitalista é garantir um lugar na classe economicamente alta e expelir dela o maior número de pretendentes importunos. A ignorância dos verdadeiros fatores históricos que determinaram a divisão da sociedade em classes opostas, o desconhecimento da teoria que demonstra a inevitável superação deste estado, leva os endinheirados a crer que as ocorrências sociais têm origem exclusivamente na vontade dos homens e só dependem da subjetividade. Os fenômenos sociais são considerados fatos psicológicos. Daí a crença no valor da propaganda de ideias justas, desde que se trata apenas de combater outras idéias, errôneas. As massas, quando reivindicam direitos e demonstram disposição de alterar a estrutura da sociedade, são vítimas de falsos conceitos que agentes de credos malignos espalharam entre elas. Se começam a agitar-se e mesmo dão sinais de iminente revolta é porque foram envenenadas por ideias de ódio e vingança que os agitadores propalaram. Para sanar essa situação é preciso difundir idéias sadias, as de respeito à propriedade privada, de amor à ordem constituída, de aceitação humilde das dificuldades da vida, de admiração pelos que conquistaram fortuna graças ao talento e honestidade, etc. Para os "ricos" a rebelião do povo tem origem nas idéias falsas em que acredita. É, no fundo, resultado da ignorância. Não há maldade nas massas sofredoras, mas apenas debilidade moral, por efeito da incompreensão da natureza da sociedade. Donde, um dos remédios que lhes pretendem oferecer seja o chamado "rearmamento moral". É claro 'que por trás de tão simplista mobilização ideológica escondem-se os mais refinados espertalhões, mas há tal conveniência por parte dos poderosos em acreditar nesta lírica ingenuidade, que muitos respeitáveis inocentes talvez cheguem a aderir com sinceridade aos "princípios" dessa arapuca imperialista.
De todas estas considerações só uma verdade ressalta: os "ricos" tudo fazem para evitar discutir a causa da sua riqueza. E quando têm de explicá-la, apelam para motivos morais, o que ainda mais os engrandece. Na origem da riqueza está a força de vontade, o caráter firme e audacioso, a inteligência prática vitoriosa, a conduta reta e justa, a perseverança no trabalho, a ambição nobre, a capacidade de domínio, valores éticos e psicológicos que só poucos possuem, e lhes permitem acumular o cabedal que os demais homens, mal dotados pela natureza, dispersam em atividades mal conduzidas, não alcançando por isso resultados apreciáveis. A formulação supremamente ingênua desta atitude geral encontramo-la na crença do "rico" de que foi o seu trabalho que lhe deu a fortuna que adquiriu. Ora, a verdade é exatamente o oposto. Foi o trabalho dos outros, dos trabalhadores, dos "pobres", que se acumulou nas mãos de alguns poucos e se converteu na riqueza deles. O "rico" acredita que o trabalho criador da riqueza que ostenta foi o seu, pessoal; não pode perceber que o trabalho é sempre o do trabalhador, e que, ele, rico, na verdade não trabalha. Esta tese talvez à primeira vista se afigure paradoxal, pois é sabido que mesmo os homens de maior fortuna, os magnatas, os mais poderosos banqueiros e industriais, comparecem diariamente aos seus escritórios e passam grande parte do tempo ocupados na direção dos seus negócios. Porém esta atividade, que chamam de "trabalho", na verdade não o é. Este assunto será discutido nas páginas seguintes deste caderno. O trabalho é do trabalhador, somente dele, que, por enquanto, é pobre. E é pobre justamente porque trabalha, o que demonstra que o faz, num regime no qual o trabalho não reverte em benefício de quem o executa, mas é capturado por outro, que dele se apodera e o converte em origem de riqueza individual privada.
Na forma de produção capitalista o dono do capital empresa o trabalho do operário e por ele paga um salário que lhe parece justo. E lhe parece justo porque acredita que está pagando todo o trabalho que o operário forneceu. Donde, não só economicamente ser julgada correta esta transação, como moralmente parecer lícita e perfeita. O operário, em princípio, nada tem a reclamar. Trabalha e recebe o justo preço do seu esforço, conforme as condições econômicas determinam. Na verdade, porém, esta transação é fraudulenta, injusta e portanto imoral, porque o operário não recebe o equivalente à totalidade do valor dos bens que produz, mas apenas parte desse valor. O restante fica em mãos do capitalista e vai constituir precisamente a origem da riqueza pessoal. Compreende-se, assim, que a riqueza individual é fruto do trabalho coletivo do trabalhador, apenas, no regime vigente, detida por pequena minoria, em vez de reverter à totalidade das massas que labutam nas oficinas e nos campos. Para cobrir com o manto da dignidade a espoliação essencial que praticam, os "ricos" são obrigados a estabelecer uma escala de valor do trabalho, colocando o seu, é claro, no traço mais alto. O "trabalho" do rico, que consiste em acumular o trabalho não pago do trabalhador, é valorizado como o mais elevado modelo de atividade; mas ao mesmo tempo este modo de pensar demonstra que só é admitido corno "trabalho" dentro de um regime que permite essa atividade. Não se trata em tal caso da relação direta do homem com a natureza, para efeito de aproveitar as forças produtivas que a inteligência descobre, organizando-lhes o aproveitamento segundo relações humanas equitativas; trata-se do "trabalho" que consiste em coordenar de determinada forma, injusta, exploradora, desumana, o verdadeiro trabalho, o dos outros, o dos trabalhadores . Por conseguinte, descobrimos que no fundo da questão: "Por que há ricos?" o que se contém é a investigação da origem, natureza e modalidades do trabalho humano. Sem enveredar por este terna, estamos em condições desde já de verificar a diferença entre o verdadeiro trabalho e o falso, o que consiste em montar um aparelho de domínio social para se apoderar do outro, e vigiar para que não se altere este sistema. O rico, a rigor, não trabalha, porque o objeto do seu "trabalho" é que é o trabalho, porém este é o dos outros, o dos operários . Seu "trabalho" limita-se a fazer os outros trabalharem.
Evidentemente a seus próprios olhos esta atividade representa trabalho, e mesmo a forma mais alta, mais digna e valorizada. Mas em essência não é. De fato, o "rico" só é tal porque possui o trabalho que se converteu em capital; na administração e multiplicação do capital se esgota toda a sua atividade, que julga ser trabalho . Por natureza, o "rico" não pertence à esfera do trabalho mas à do capital. Sendo este a materialização da parte do trabalho que o trabalhador não recebe, o rico na verdade não trabalha, só "capitaliza". Esta constitui a sua atividade pessoal distintiva; "capitalizar" é o verbo simétrico e oposto ao verbo "trabalhar". O contrário do trabalhador não é o não-trabalhar mas o capitalizar. O capital aparece aos seus possuidores como resultado natural da ação por eles exercida na sociedade, e que, por isso, julgam ser "trabalho". Sendo na verdade o anti-trabalho, é responsável não só pela ordem social vigente, como por toda a estrutura de valores que a ela estão ligados, inclusive a situação de riqueza que os proprietários consideram moral e permanente. Pelas doutrinas econômicas que cultivam, o capital é concebido como fator indispensável da produção social; assim sendo, é sempre benéfico na essência, além de ser eterno na existência. A sociedade civilizada em conjunto exige, para subsistir, a composição harmônica destes dois fatores permanentes, capital e trabalho. Sempre foi assim e sempre há de ser. Donde, o que se impõe, para tranqüilidade de todos os homens é encontrar formas de governo da comunidade, modos de produção dos bens sociais, que garantam a perfeita concordância dos dois fatores, dividindo entre eles, em proporção justa e equitativa, a totalidade dos bens, que, unidos, produzem. A paz social depende desta harmonia e só estará assegurada quando não houver mais possibilidade de conflitos entre capital e trabalho. Não chegamos ainda a esta fase, é bem verdade, porque há espíritos mal intencionados que atuam em sentido oposto ao da aliança dos fatores sociais fundamentais, criando rivalidades, e até pregando doutrinas que dizem ser inexeqüível tal conciliação. Mas essas dificuldades são obra de nefastos agitadores, de invejosos ou de lunáticos. Houve, é certo, alguns pensadores respeitáveis que procuraram demonstrar com argumentos científicos a impossibilidade daquela acomodação, pois a natureza dos fatores referidos é antagônica e jamais permitirá pacífico entrosamento. Daí concluírem eles que na sociedade tem de haver permanente estado de inconciliação entre a classe dos que detêm o capital e a dos que só exercem o trabalho. Tais doutrinas, porém, são errôneas, não merecem a aprovação dos "ricos", são combatidas pela parte mais sadia da sociedade, não só os pensadores de melhor quilate, os professores universitários mais admirados, os jornalistas mais reputados, mas ainda têm contra si o pensamento e a palavra das instituições eclesiásticas, por natureza, infalíveis. Logo, a riqueza privada, mesmo sendo simples decorrência da posse do capital, é fato inevitável e irremovível no panorama social, nada tem de desonesto ou de revoltante, pois decorre de um estado de coisas natural, que seria inútil tentar modificar. Por conseguinte, o que os operários, não participantes do capital, têm a fazer é se acomodar à ordem vigente, lutar dentro dela para melhorar um pouco a existência, embora sabendo de antemão que a divisão dos homens entre capitalistas e trabalhadores é fatal e definitiva.
Eis a teoria de que se valem os "ricos", — e que na obra dos sociólogos chegados à burguesia e na palavra dos oradores sacros é repetidamente defendida e justificada — para acreditar que sua situação é sólida e moral, e fazer crer aos operários que só devem se esforçar por obter reivindicações parciais, simples tentativas de se ajustarem à organização atual. No entanto, a verdadeira teoria da história demonstra a falsidade dessa cavilosa doutrina, e a prática da luta das classes oprimidas em prol da sua libertação atesta o infundado da crença na permanência do domínio de uma classe opressora rica. Nascido com a divisão social do trabalho, terminará quando o povo, em sua totalidade, se apropriar dos produtos que o seu esforço, físico e intelectual, cria. A condição para que se destrua a supremacia da classe ociosa e farta é o incremento da consciência das massas, a compreensão das causas sociais da miséria e da obediência em que vegetam, e isto não pode ser conseguido pela exortação oral, mas apenas pela luta prática contra os fatores adversos, conduzida por líderes surgidos dessa própria massa e pelos intelectuais que com elas sinceramente se identificam. Mas de nada adiantará a luta violenta e obstinada se não for guiada pela correta teoria social, que fornece as normas da ação, define os objetivos a atingir e infunde as esperanças de triunfo. Nestas condições as massas compreenderão que seu cativeiro não é definitivo nem constitui fatalidade social. Os "ricos", ou seja, á classe dominante, se iludirão durante mais algum tempo, pois os seus ideólogos se encarregarão de entorpecer-lhes os sentidos . A realidade, porém, não depende das mistificações de interesseiros sociólogos e sim de causas materiais pertencentes ao seu processo próprio. A pretendida paz entre o capital e o trabalho, pela qual se esforçam os luminares dos partidos dominantes, os grandes pensadores da Associação Comercial, algumas altas Patentes, bondosos Pastores de almas, ativos corretores da Bolsa e os outros milionários em geral, não será jamais alcançada, e disso dão prova as permanentes crises econômicas do regime, e sobretudo as inquietudes, as exigências e a revolta das classes trabalhadoras, urbanas e camponesas . Os "ricos" sentem que o solo sobre o qual pisam trepida, o que deveria convencê-los de que habitam urna região vulcânica. Da precariedade de sua situação, nenhum sinal lhes aparece mais claro do que a ocorrência das greves, com freqüência cada vez maior. Já dissemos o que, para nós, significam, em essência. Vejamos em duas palavras mais o que constitui os fundamentos sociais das greves.
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