Por que os ricos não fazem greve? - Introdução

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Introdução

-- Álvaro Vieira Pinto

DURANTE SÉCULOS, NUMEROSAS CONCEPÇÕES FILOSóficas procuraram interpretar a realidade do homem, em busca daquilo que chamavam de "essência" desse ser, que o distinguia de todos os demais seres. Embora compreendessem que se devia considerar o homem como um vivente incluído no reino animal, julgavam que, pela posse de uma essência própria somente dele, distinguia-se das demais criaturas, representando por si um fenômeno à parte, um reino original, o da racionalidade, superior ao da simples animalidade. Conforme o conceito que elaboravam, relativo à essência do homem, divergiam as filosofias . Chamavam-na "razão", "alma", "espírito", "eu", "consciência", enfim, concebiam, com nomes diversos, uma realidade específica, de ordem não material, possuída pelo homem, a qual lhe daria a particular situação que ocupa no mundo e os atributos que o diferenciam dos demais entes. Como quer que entendessem essa realidade distintiva do ser humano, uma condição lhe era unanimemente reconhecida: tratar-se-ia de algo distinto das realidades do mundo físico, de um novo tipo de ser, espiritual ou de origem divina, graças ao qual o homem se constituiria como animal racional, isto é, capaz de discernimento intelectual, conhecimento universal e vontade livre. Deste modo o homem, embora sendo ente vivo, ligado ao mundo material pelo corpo de que é dotado, na verdade pertenceria em essência não a este, mas a um outro mundo, o do espírito, no qual se processam suas operações mais altas, o saber e a vontade, e onde, por livre arbítrio, teve o fio do seu destino imortal, pois sua existência não se confina no presente estado de indivíduo perecível, incluído no mundo dos fenômenos materiais.

Estas concepções, ainda quando divergentes entre si por detalhes, pela sistematização e pelas conclusões que tiram do princípio supremo indicado, têm todas de comum o traço especulativo, abstrato, ideal, e por isso se diz que este tipo de concepções tem caráter metafísico. São produto de imaginação, e por aí já nos estão revelando que só podem resultar da especulação do pensador desligado da realidade objetiva ou que dela deseja fugir para se refugiar num mundo superior, ilusório, concebido como lugar das idéias puras . Em todas essas concepções a essência do homem é entendida como algo cuja posse o retira do mundo material onde vive e opera, ainda quando tenham de reconhecer que, passageiramente, cada um de nós está obrigado a transitar por este vale de lágrimas e a nele labutar. O defeito das ilusões metafísicas desta espécie consiste em ocultar aos nossos olhos um aspecto do tema absolutamente decisivo: o de que não se pode definir a essência do homem sem incluir nela o fato, originário e distintivo, de que o homem é um ser social. Se abandonarmos as atitudes especulativas, metafísicas, imaginativas, e enveredarmos por este novo caminho à procura da essência do ser humano, não só descobriremos a verdade a seu respeito,, como, além de refutar as ilusões idealistas, chegaremos a construir a teoria útil à realização dessa mesma essência humana, a qual, conforme iremos ver, não está dada de uma vez para sempre em cada indivíduo pelo simples fato de nascer, mas tem de ser criada por ele ao longo da existência, dependendo, portanto, das condições materiais, sociais, em que decorrerá sua existência.

Ao dizermos que só se apreende a realidade do homem quando consideramos a sua natureza social, estamos afirmando uma proposição que muitos julgariam talvez trivial, ou mesmo inadequada, visto também conhecermos numerosas espécies animais cuja vida se passa em estado gregário, numa sociabilidade sem dúvida inferior à do homem mas não menos evidente. Desde os rebanhos de mamíferos, às aves migratórias e aos insetos construtores, sabe-se que há espécies animais que levam vida coletiva, onde não subsistem indivíduos isolados, manifestando, por isso, o traço social que apontamos como nota integrante da essência humana. Onde está, porém, a diferença que distingue as espécies gregárias do homem racional? Neste fato: a sociabilidade dos homens surgiu e foi se desenvolvendo em formas diversas ao longo do tempo, por efeito do modo particular como esses seres se relacionaram com a natureza no provimento das condições indispensáveis à sustentação da sua vida, por efeito das necessidades impostas pela execução dessa relação vital com o mundo natural, numa palavra, como resultado do trabalho.

Tocamos aqui o ponto capital, que nos serve de origem para as reflexões que a seguir desdobraremos. A forma de relação estabelecida pelo homem com a natureza é única, específica, privativa desse animal, e por isso o distingue radicalmente de todos os demais, inclusive daqueles que levam existência grupal: tal forma consiste no trabalho. Todo ser vivo depende da natureza exterior para obter as substâncias de que se nutre, encontrar o espaço onde se move, as condições de ambiente onde se aclima, se protege, e se reproduz. Por este aspecto o homem não faz exceção. Mas, enquanto os demais seres animais utilizam para se nutrir ou satisfazer suas outras necessidades aquilo que encontram ao seu alcance, o homem atua sobre a natureza com o fim de produzir os elementos de que precisa para sustentar e desenvolver a existência. exatamente esta atuação com o fim de produzir o que não está imediatamente dado, que configura a essência do trabalho. Por isso, só o homem é um ser vivo capaz de trabalhar. Os animais não têm essa capacidade. Deste modo, compreende-se por que motivo o trabalho se encontra na origem da essência humana do homem.

Se tal é o fato distintivo, específico da natureza desse ser animal superior, daí decorre um aspecto conseqüente, no qual se vai espelhar a realização da sua essência: o trabalho que o homem, por necessidade, exerce sobre o mundo exterior não pode ser praticado de modo isolado, individual, agindo cada trabalhador independentemente dos demais . Ao contrário, a condição para que seja realizado com êxito, se encontra na associação dos indivíduos para cumprir em operação conjunta a tarefa que devem levar a cabo para sustentar a vida. Assim sendo, o trabalho, para ser possível, impõe o surgimento de vínculos entre os homens, ou, noutras palavras, a produção dos bens, que é a sua finalidade, assume obrigatoriamente caráter social. No curso das operações produtivas os homens se encontram e são conduzidos a tecer um sistema de relação entre si, que constituem relações de tipo especial, as relações sociais . Fora do sistema de relações sociais o "homem" tem existência apenas abstrata, não passa de idéia geral; o que de fato existe é sempre o homem concreto, ou seja, aquele que se acha envolvido por determinado sistema de relações produtivas, cuja realidade não depende da sua vontade, mas foi forjada ao longo do processo expansivo da capacidade produtiva comum da espécie humana, de melhor apropriação dos fatores naturais em seu proveito.

Eis porque são completamente idealistas e ingênuas as concepções da "essência do homem" que não se fundam sobre o reconhecimento do caráter social desse ser, como conseqüência da necessidade de utilizar sua força de trabalho em benefício da criação dos meios materiais de sobrevivência. As definições que omitem o aspecto que revela o homem como criador de si mesmo mediante o trabalho, a produção econômica dos recursos para sua manutenção em vida, são definições metafísicas, confusas, ideais; conduzem inevitavelmente a concepções da realidade humana não apenas falsas, mas perniciosas, pois, negando a vinculação essencial do homem ao trabalho produtivo, apresentam-no como desligado do trabalho. São, portanto, concepções favoráveis às teorias filosóficas, sociais e econômicas das classes exploradoras, às quais convém apresentar o homem como sendo naturalmente objeto do trabalho. Explica-se o caráter antagônico das duas principais concepções do homem pela diferença de ponto-de-vista em que se coloca o pensador. Para o representante da aristocracia intelectual, orgulhosa de sua posição de classe, presa aos interesses econômicos dos aproveitadores do trabalho do povo, é evidente não lhe ser útil qualquer definição que mencione o fato decisivo de ser o homem o criador da sua própria existência mediante o trabalho, porquanto este modo de pensar levaria inevitavelmente a investigar as condições sociais. objetivas em que é desempenhado o trabalho e, afinal, a descobrir a espoliação de que é vítima o trabalhador. Terminaria por mostrar que o capitalista procede como fator anti-humano, destruindo no trabalhador aquilo que lhe dá a dignidade de pessoa: a condição de sujeito do próprio trabalho. Revelando-o não como sujeito, mas como objeto da exploração dos possuidores do dinheiro, dos meios de produção, deixa patente que a atividade do capitalista, como procedimento de classe, é desumana, destrói o que de propriamente humano existe no homem, ao reduzi-lo à condição de objeto de uma transação econômica, com preço e prazo.

É evidente, porém, que a concepção que o trabalhador faz de si tem de ser naturalmente outra. Por isso, os pensadores que assumem os interesses das massas operárias são levados a conceber a essência do homem como definida pelo conjunto de suas relações sociais, pela totalidade das influências objetivas a que está submetido, representadas por sua situação num contexto nacional, desenvolvido ou subdesenvolvido, numa classe, exploradora ou explorada, numa modalidade de trabalho, industrial ou agrícola, desempenhado com instrumentos modernos ou primitivos, etc. De acordo com este modo de entender, o ser do homem não é entendido em caráter abstrato, como "filho de Deus", "pessoa inviolável", "portador de uma alma imortal", "criatura predestinada", e outras tantas expressões ingênuas, mas concebido em caráter concreto, como produto de sua própria existência em tais ou quais condições materiais e sociais de trabalho. A superioridade deste segundo modo de pensar está em que somente graças a ele será possível ao homem subjugado a um trabalho penoso e explorado modificar sua situação miséria e aflição, e construir neste mundo uma sociedade justa e verdadeiramente humana.

A importância deste assunto é primordial; enganar-se-ia quem o julgasse mero tema de discussões filosóficas. Só pensará assim quem não souber que a filosofia, nos numerosos sistemas que tem imaginado, exprime sempre os pontos-de-vista de quem representa determinada classe social. Por isso, o simples gesto de relegar ao plano das discussões acadêmicas a interpretação da essência do homem já constitui por si mesmo uma atitude ideológica, típica da mentalidade dos pensadores ligados aos grupos dominantes . Convém-lhes, é claro, reservar para o seleto círculo de personagens ociosos, sustentados pelos serviços intelectuais que prestam à classe. dirigente, o direito de debater esta questão, considerada "técnica", o que significa que se arrogam o direito, eles que representam os exploradores, de definir o conceito do homem. As massas, que formam a maioria dos homens reais, criadores da vida real, que, no país subjugado e subdesenvolvido é a permanente tragédia da miséria, do embrutecimento e do atraso, não têm o direito de dizer a sua palavra, de enunciar o que julgam seja o "homem". De fato, por longos séculos, só de maneira muito imperfeita encontraram quem lhes exprimisse o pensamento a respeito de si próprios. Nos tempos atuais é que surgiram as teorias que efetivamente representam o autêntico modo de pensar da massa, porque adotam a perspectiva dela sobre a realidade da natureza e da sociedade. E então, aquilo que os pensadores da classe dominante se compraziam em discutir até as extremas sutilezas, construindo sistemas de idéias complexos e difíceis, porém falsos e prejudiciais à consciência do povo, pôde ser denunciado pelos representantes intelectuais do próprio povo, agora desperto para a consciência de si e capaz de refutar os sofismas e embustes ideológicos dos filósofos e sociólogos direta ou indiretamente a soldo do poder econômico.

A descoberta fundamental, que revolucionou o conceito do ser humano, foi a percepção do verdadeiro significado do trabalho, e conseqüentemente o das relações sociais dele decorrentes, para a qualificação da essência do homem. Até então vigoravam ou as absurdas e humilhantes concepções teológicas, como a que sentenciava: "comerás o pão com o suor do teu rosto", onde se reflete o conceito do trabalho como castigo divino, corno condenação infligida ao homem pelo suposto "pecado original"; ou as concepções sociológicas dos criadores das teorias capitalistas e imperialistas, segundo as quais a divisão da humanidade em trabalhadores explorados e aproveitadores afortunados e ociosos representa um fato material, resultante de leis imutáveis do desenvolvimento da humanidade. Foi preciso que a própria classe trabalhadora encontrasse os intérpretes dos seus legítimos interesses, para que estas aviltantes e perversas concepções fossem denunciadas e substituí• das pela verdadeira teoria da realidade humana. Só este merece ser chamado de "humanismo", este conceito tão importante mas ao mesmo tempo tão propositadamente confundido pelos ideólogos das classes dominantes.

O propósito fundamental dos pensadores que intencionalmente desejam mistificar a consciência das massas mediante teorias errôneas, interesseiras e desviadoras, está em impedi-las de compreender a atual divisão da sociedade capitalista em "ricos" e "pobres", e de descobrir porque se instalou e ainda vigora tal diferença social. Na raiz de todas as teorias enganadoras encontra-se o desejo de ocultar ao povo em geral a origem e a causa da situação privilegiada de que goza essa minúscula minoria que compõe os denominados "ricos". Para o povo, porém, o que importa acima de tudo é saber quem são os ricos e por que se tornaram ricos.


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