Os palestinos deixaram sua pátria voluntariamente em 1948
Dez mitos sobre Israel
-- Ilan Pappe
5 Os palestinos deixaram sua pátria voluntariamente em 1948
HÁ duas questões relativas a esta suposição, e ambas serão estudadas aqui. Primeira: existia a vontade de expulsar os palestinos? Segunda: às vésperas da guerra de 1948, os palestinos foram convocados a deixar voluntariamente suas casas, como diz a mitologia sionista?
A centralidade da ideia de realocação no pensamento sionista foi analisada, ao meu entender, de forma muito convincente, no livro de Nur Masalha Expulsão dos palestinos[1]. Aqui, apenas acrescentarei algumas citações para enfatizar o argumento de que os lideres e ideólogos sionistas não foram capazes de divisar um modo de implementar seu projeto que não envolvesse expulsar a população nativa, fosse através de acordos ou do uso da força. Recentemente, após anos de negação, historiadores sionistas como Anita Shapira aceitaram que seus heróis, os lideres do movimento sionista, contemplaram a sério a ideia de transferir os palestinos. No entanto, eles se agarram desesperadamente ao fato de que houve uma confusão entre transferência “compulsória” e “voluntária[2]. E verdade que, nos encontros públicos, todos os lideres e ideólogos sionistas falavam em transferência por meio de acordos. Mas mesmo essas falas revelam uma verdade amarga: não existe transferência voluntária. É uma semântica, não uma prática.
Berl Katznelson foi provavelmente um dos mais importantes ideólogos sionistas dos anos 1930. Era considerado a consciência moral do movimento. Seu apoio a transferência era inequívoco. Na vigésima conferência sionista, convocada pouco depois de os britânicos oferecerem sua primeira proposta significativa de paz, ele manifestou com firmeza seu apoio à ideia. Disse aos presentes:
Minha consciência esta completamente limpa. Melhor um vizinho distante que um inimigo próximo. Eles não sairão perdendo com sua transferência, e certamente nós também não. No balanço final, essa reforma política beneficia os dois lados. Já faz muito tempo que estou convencido de que essa é a melhor solução |...] e isso deve acontecer em breve[3].
Quando ele soube que o governo britânico cogitava a possibilidade de transferir os palestinos dentro da Palestina, ficou muito desapontado: “A transferência para ‘dentro da Palestina’ significaria a área de Shechem (Nablus). Acredito que o futuro deles esteja na Síria ou no Iraque[4].
Naqueles tempos, lideres como Katznelson esperavam que os britânicos fossem convencer, ou induzir, a população local a partir. Em uma famosa carta que Ben-Gurion escreveu a seu filho Amos em outubro de 1937, ele já havia entendido que seria necessário o uso da força[5]. Publicamente, naquele mesmo ano, Ben-Gurion prestou apoio a Katznelson, dizendo:
A transferência compulsória dos árabes dos vales do Estado judeu proposto poderia nos dar algo que jamais tivemos, nem mesmo quando resistíamos sozinhos nos dias do primeiro e do segundo Templos [...] Temos uma oportunidade com que jamais sonhamos, nem mesmo em nossas fantasias mais desvairadas. Isso é mais que um Estado, um governo e uma soberania, é a consolidação nacional em uma pátria livre[6].
Com semelhante clareza, ele disse à assembleia sionista em 1937: “Em muitas partes do país, não conseguiremos nos instalar sem antes transferirmos os felás árabes”, o que ele esperava que os britânicos fizessem[7]. Todavia, com ou sem os britânicos, Ben-Gurion articulou o papel da expulsão no futuro do projeto sionista na Palestina ao escrever naquele mesmo ano: “Com a transferência compulsória, teríamos uma vasta área para assentamentos [...] Eu apoio a transferência compulsória. Não vejo nada de imoral nisso[8]".
Em 2008, ao examinar essas declarações do passado, um jornalista israelense concluiu que muitos israelenses ainda as julgavam aceitáveis setenta anos depois. De fato, desde 1937, a expulsão dos palestinos faz parte do DNA sionista do Estado judeu moderno[9]. Contudo, o processo não foi tão explicito. Ben-Gurion e outros lideres foram cautelosos quanto ao que fazer caso fosse impossível convencer os palestinos a partir. Por outro lado, não estavam inclinados a articular nenhuma outra alternativa política. Ben-Gurion diria apenas que não tinha objeções à transferência forçada, embora não a considerasse necessária naquela conjuntura histórica.
Katznelson foi informado dessa ambivalência. Em uma reunião pública em 1942, alguns lideres sionistas de esquerda que achavam que Ben-Gurion havia desistido de transferir os palestinos questionaram-no a respeito do tema. Ele respondeu: “Pelo que sei da ideologia sionista, isso [a transferência] faz parte da concretização do sionismo; a percepção desse sionismo é a transferência do povo de um país para outro — uma transferência mediante acordos[10]. Em público, Ben-Gurion, o líder do movimento, e outros ideólogos como Katznelson eram todos a favor do que chamavam de transferência voluntária. Ben-Gurion disse: “A transferência dos árabes é mais fácil do que qualquer outra, devido a existência de Estados árabes na região”. Ele acrescentou que, caso os palestinos fossem transferidos, isso significaria uma melhoria para eles (não explicou por quê). Ele sugeriu transferi-los para a Síria. E continuou a falar em transferência voluntária.[11]
Contudo, esse não era um posicionamento honesto, tampouco possível. Na verdade, colegas desses lideres e ideólogos não viam como seria possível uma transferência não compulsória. Em uma reunião privada, em junho de 1938, da Agência Executiva Judaica dedicada a transferência, os membros ali reunidos, incluindo Ben-Gurion, Katznelson, Sharett e Ussishkin aparentemente foram todos favoráveis à transferência compulsória. Katznelson tentou explicar o que entendia por compulsório: “O que significa uma transferência compulsória? E a transferência contra a vontade do Estado árabe? Contra esse desejo, nenhuma força no mundo conseguiria implementar tal transferência[12]. Ele explicou que “compulsório” significava superar a resistência dos próprios palestinos:
Se precisarmos fazer um acordo de transferência com cada vilarejo árabe e cada indivíduo árabe, jamais resolveremos o problema. Transferimos indivíduos árabes o tempo todo, mas a questão sera a transferência de grandes números de árabes com a anuência do Estado árabe[13].
Esse era o truque. Falava-se em transferência voluntária, e a estratégia foi ganhando força gradualmente até 1948, quando surgiu uma oportunidade de transferência em massa. Mesmo se aceitarmos a tese de Benny Morris em seu livro The Birth of the Palestinian Refugee Problem, segundo a qual as transferências teriam sido graduais (e não massivas), a partir de certo ponto, por mais gradual que o processo seja, ele ainda resultara em limpeza étnica massiva. Falaremos sobre isso mais adiante.
A partir das minutas da reunião de junho de 1938, descobrimos que o discurso da transferência voluntária designava, em realidade, uma realocação imposta. Ben-Gurion afirmou que uma transferência compulsória, sobretudo se levada a cabo pelos britânicos, “seria o maior feito da história dos assentamentos judeus na Palestina”. Ele acrescentou: “Sou favorável à transferência compulsória; não vejo nada de antiético nisso.” Menachem Ussishkin, líder e ideólogo proeminente, acrescentou que “seria muito ético transferir os árabes da Palestina e reassentá-los em melhores condições”. Ele insinuou que provavelmente seria essa a lógica por trás da Declaração Balfour. Além disso, não se perdeu tempo em dar início a
uma discussão sobre metas e formas de alcançá-las. Essas questões só seriam finalizadas em 1948, mas as bases foram lançadas nesse encontro de 1938. Uma minoria muito pequena dos presentes objetou contra a transferência compulsória. A Síria era o destino de preferência, e havia a esperança de que pudessem deslocar ao menos 100 mil palestinos na primeira onda[14].
A discussão sobre a transferência foi suspensa durante a Segunda Guerra Mundial, quando a comunidade focou em aumentar o número de imigrantes judeus e estabelecer o futuro Estado. A conversa voltou a ganhar força quando ficou evidente que a Grã-Bretanha estava prestes a deixar a Palestina. A decisão britânica foi anunciada em fevereiro de 1947, justo quando vemos a intensificação do debate acerca da transferência forçada. Em meu livro "A limpeza étnica da Palestina", examino de que forma essas discussões de 1947 desembocaram em um grande plano para a expulsão em massa dos palestinos em marco de 1948 (Plano D), assunto que retomarei mais adiante neste capítulo. A narrativa oficial israelense, contudo, foi a mesma por muitos anos: os palestinos se tornaram refugiados porque seus lideres, e os lideres do mundo árabe, disseram-lhes para deixar a Palestina antes que os exércitos árabes invadissem e expulsassem os judeus, após o período do qual poderiam retornar às suas casas. Mas nunca existiu essa convocação — trata-se de um mito inventado pelo Ministério das Relações Exteriores israelense. Na breve tentativa da ONU de promover a paz logo após a guerra de 1948, a posição do Ministério das Relações Exteriores israelense era a de que os refugiados tinham fugido. No entanto, esse processo de paz especifico (que durou alguns meses da primeira metade de 1949) foi tão breve que não foi solicitada a Israel nenhuma prova dessa alegação, e durante muitos anos a questão dos refugiados foi expurgada da agenda internacional.
A necessidade de apresentar provas surgiu no início dos anos 1960, como ficamos sabendo recentemente graças ao trabalho diligente de Shay Hazkani, repórter freelance a serviço do Haaretz[15]. De acordo com sua pesquisa, durante os primeiros dias da administração Kennedy em Washington, o governo dos EUA começou a pressionar Israel para que autorizasse o retorno dos refugiados de 1948. Desde então, a posição oficial dos EUA havia sido o apoio ao direito de retorno dos palestinos. Em realidade, já em 1949 os estadunidenses haviam pressionado Israel para que repatriasse os refugiados e imposto sanções ao Estado judeu por sua recusa em cooperar. No entanto, a pressão durou pouco, pois a Guerra Fria ganhou tração e os estadunidenses perderam o interesse no assunto até a chegada de John F. Kennedy ao poder (ele também foi o último presidente dos EUA que se recusou a prestar amplo auxílio militar a Israel; depois de seu assassinato, abriu-se a porteira — um estado das coisas que levou Oliver Stone a aludir a uma suposta ligação israelense com o assassinato do presidente em seu filme JFK).
Um dos primeiros atos da administração Kennedy nesse âmbito foi participar ativamente das discussões da Assembleia Geral da ONU sobre o assunto no verão de 1961. O primeiro-ministro Ben-Gurion entrou em pânico. Ele estava convencido de que, com a bênção dos EUA, a ONU poderia forçar Israel a repatriar os refugiados. Ele queria que acadêmicos israelenses conduzissem pesquisas provando que os palestinos haviam partido de forma voluntária. Com esse intuito, procurou o Instituto Shiloah, principal centro acadêmico israelense de estudos sobre o Oriente Médio a época. A tarefa foi confiada a Ronni Gabai, pesquisador júnior. Com permissão para acessar documentos sigilosos, ele chegou a conclusão de que expulsões, medo e intimidações foram as principais causas do êxodo palestino. Ele não encontrou nenhum indício da suposta convocação das lideranças árabes para que os palestinos deixassem a terra e abrissem caminho para os exércitos invasores. No entanto, aqui há um enigma. A conclusão que acabo de mencionar apareceu na tese de doutorado de Gabai sobre o assunto e, segundo ele, é a mesma que enviou ao Ministério das Relações Exteriores israelense[16]. Mas em sua pesquisa nos arquivos, Hazkani encontrou uma carta de Gabai ao primeiro-ministro resumindo sua pesquisa e mencionando a convocação dos árabes para a saída dos palestinos como causa principal do êxodo.
Hazkani entrevistou Gabai, que ainda hoje garante não ter escrito essa carta, que segundo ele é incompatível com sua pesquisa. Alguém, ainda não se sabe quem, enviou um resumo diferente do estudo. De qualquer modo, Ben-Gurion não ficou satisfeito. Ele sentiu que o resumo — ele não leu a pesquisa inteira — não era pungente o bastante. Encomendou a um pesquisador conhecido seu, Uri Lubrani — mais tarde um dos especialistas em Irã da Mossad —, um segundo estudo. Lubrani passou a tarefa para Moshe Maoz, hoje um dos principais orientalistas de Israel. Maoz entregou a encomenda, e em setembro de 1962 Ben-Gurion tinha o que ele mesmo descreveu como nosso “Livro Branco”, provando sem margem de dúvida que os palestinos fugiram porque lhes disseram para fazer isso. Mais tarde Moaz fez um PhD em Oxford orientado por Albert Hourani (sobre um assunto não relacionado), mas disse em uma entrevista que sua pesquisa foi mais afetada pela tarefa política de que foi incumbido do que pelos documentos que ele havia visto[17].
Os documentos que Gabai examinou no início de 1961 perderam o sigilo no final dos anos 1980 e muitos historiadores, entre eles Benny Morris e eu, viram pela primeira vez provas irrefutáveis do que havia afugentado os palestinos da Palestina. Embora Morris e eu não concordemos quanto ao grau de premeditação e planejamento dessa expulsão, concordamos que não houve nenhum chamado dos lideres árabes e palestinos para que a população partisse. Nossa pesquisa, desde então descrita como o trabalho dos “novos historiadores”, reafirma a conclusão de Gabai de que os palestinos perderam suas casas e sua pátria principalmente em razão de expulsões, intimidações e medo[18].
Morris postulou que o início da luta entre Israel e os exércitos árabes que adentraram o país no dia em que o Mandato Britânico chegou ao fim, em 15 de maio de 1948, foi a principal razão para o que chamou de “Nascimento do problema dos refugiados palestinos”. Argumentei que a movimentação em si não foi a causa, pois metade dos que se tornaram refugiados — centenas de milhares de palestinos — haviam sido expulsos antes mesmo de ela começar. Além disso, aleguei que Israel deu início à guerra para aproveitar a oportunidade histórica de expulsar os palestinos[19].
A ideia de que os palestinos partiram voluntariamente não é a única falsa suposição em relação à guerra de 1948. Três outras são veiculadas com frequência sempre que se explicam os acontecimentos daquele ano. A primeira é que os palestinos seriam culpados pelo que Ihes aconteceu, pois teriam rejeitado o plano de partilha da ONU de novembro de 1947. Essa alegação ignora a natureza colonialista do movimento sionista. O que esta evidente é que a limpeza étnica dos palestinos não pode ser de modo algum justificada como “punição” por eles terem rejeitado um plano de paz da ONU desenvolvido sem qualquer consulta aos palestinos.
As duas outras suposições associadas a 1948 são que Israel seria um Davi lutando contra um Golias árabe, e que após a guerra Israel teria estendido a mão em sinal de paz, mas os palestinos e o mundo árabe como um todo rejeitaram o gesto. Pesquisas sobre essa primeira suposição provaram que os palestinos não tinham qualquer poderio militar, e os Estados árabes enviaram um contingente de tropas relativamente pequeno (ainda menores se comparados as forças judaicas), além de menos treinadas e equipadas que o oponente. Ademais, essas tropas foram enviadas a Palestina não como resposta à declaração da fundação do Estado de Israel, mas como reação as operações sionistas que já haviam começado em fevereiro de 1948, e particularmente à luz do massacre bastante divulgado ocorrido no vilarejo de Deir Yassin, próximo a Jerusalém, em abril de 1948[20].
Quanto ao terceiro mito, segundo o qual o Estado de Israel teria feito um gesto de paz após o conflito, os documentos mostram o contrário. Na verdade, as lideranças intransigentes de Israel se recusaram explicitamente a abrir negociações sobre o futuro da Palestina no período pós-Mandato e não cogitou o retorno das pessoas que haviam fugido ou sido expulsas. Enquanto os governos árabes e lideres palestinos estavam dispostos a participar de uma nova iniciativa de paz da ONU que fosse mais razoável, as lideranças israelenses fizeram vista grossa quando, em setembro de 1948, terroristas judeus assassinaram o mediador de paz da ONU, Conde Bernadotte. Mais adiante, rejeitaram qualquer proposta de paz adotada pelo conselho que substituiu Bernadotte, a Comissão de Conciliação Palestina (PCC, na sigla em inglês), quando novas negociações começaram no final de 1948. Como resultado, a mesma Assembleia Geral da ONU que havia obtido maioria de dois terços em prol do plano de partição em novembro de 1947 votou sem objeções a favor de um plano de paz em dezembro de 1948. Foi a Resolução 194, adotada em 11 de dezembro. Ela continha três recomendações: renegociação da partição da Palestina de modo mais adequado à realidade demográfica no local; retorno pleno e incondicional de todos os refugiados; e a internacionalização de Jerusalém[21].
A intransigência israelense continuaria. Como o historiador Avi Shlaim mostrou em seu livro "A muralha de ferro", ao contrário do mito segundo o qual os palestinos jamais perderam uma oportunidade de rechaçar a paz, foi Israel quem rejeitou constantemente as ofertas na mesa[22]. Começou com a recusa da oferta de paz e de novas ideias para a questão dos refugiados apresentadas pelo governante sírio Husni Al-Zaim em 1949, e continuou com a sabotagem de Ben-Gurion aos primeiros negociantes da paz enviados por Gamal Abdel Nasser no início dos anos 1950. Mais conhecida é a maneira como Israel se recusou a demonstrar qualquer flexibilidade nas negociações com o Rei Hussein em 1972 (mediadas por Henry Kissinger e referentes à Cisjordânia) e sua recusa em ouvir o presidente egípcio Sadat quando este o avisou, em 1971, que, caso não houvesse uma negociação bilateral do Sinai, ele seria forçado a entrar em guerra pela região — o que fez, dois anos mais tarde, infligindo um golpe traumático à sensação de segurança e invencibilidade de Israel.
Todos esses mitos em torno de 1948 se fundem na imagem de um Estado judeu que luta contra todas as probabilidades, oferecendo auxílio aos palestinos, estimulando-os a ficar em suas terras e propondo a paz apenas para descobrir que não existe “nenhum parceiro” do outro lado do balcão. A melhor maneira de combater essa imagem é descrever outra vez, com paciência e de forma sistemática, os acontecimentos ocorridos na Palestina entre 1946 e 1949.
Em 1946, o governo britânico em Londres achou que ainda poderia manter o controle sobre a Palestina por algum tempo, e começou a deslocar suas forças do Egito para o território à medida que o confronto de libertação nacional egípcio ganhava força naquele ano. No entanto, um inverno inclemente no final do ano, as tensões crescentes entre os grupos para-militares sionistas que começavam a agir contra as forças britânicas e, mais importante, a decisão de deixar a Índia levaram a uma mudança dramática na política britânica em relação a Palestina. Em fevereiro de 1947, a Grã-Bretanha decidiu deixar a região. As duas comunidades — colonos e nativos — reagiram de maneiras muito distintas a essa notícia. A comunidade palestina e seus lideres presumiram que o processo seria semelhante àquele visto nos países árabes vizinhos. A administração do Mandato transferiria gradualmente o poder para a população local, que determinaria de forma democrática a natureza de seu futuro Estado. Os sionistas, contudo, estavam muito melhor preparados para o que veio a seguir. Logo após a decisão de Londres de retirar suas forças, as lideranças sionistas se organizaram em duas frentes, diplomática e militar, preparando-se para um futuro confronto.
De início, o foco principal foi a diplomacia. Isso se traduziu na procura de modos para derrotar a bem embasada reivindicação dos palestinos por uma decisão democrática acerca do futuro do país. Um jeito especifico de fazer isso foi atrelar o Holocausto e o destino dos judeus ao redor do mundo à comunidade de colonos judeus na Palestina. Assim, os diplomatas sionistas lograram persuadir à comunidade internacional de que o destino de todos os judeus do mundo dependia da decisão de quem substituiria os britânicos como soberanos da Palestina. Ainda mais persuasiva foi a associação dessa política à necessidade de compensar o povo judeu por seu sofrimento durante o Holocausto.
O resultado foi o Plano de Partilha da ONU de 29 de novembro de 1947. O documento foi preparado pelo Comitê Especial das Nações Unidas sobre a Palestina (UNSCOP, na sigla em inglês), formado por representantes com pouco — ou nenhum — conhecimento prévio da questão palestina. A ideia de que a divisão do território seria a melhor solução partiu do próprio movimento sionista. Na verdade, os membros do comitê tiveram pouco retorno dos palestinos. O Alto Comitê Árabe, o conselho político representativo dos palestinos e a Liga Árabe decidiram boicotar o UNSCOP. Já estava explicito que o direito dos palestinos à sua pátria no seria respeitado como o dos iraquianos ou egípcios. Logo após a Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações havia reconhecido o direito de todas as nações no Oriente Médio à autodeterminação. A decisão em 1947 de excluir os palestinos (semelhante à decisão de excluir a nação curda) foi um erro grave e é uma das principais causas do conflito que perdura até hoje na região.
Os sionistas sugeriram que 80 por cento da Palestina deveria ser um Estado judeu, enquanto o resto poderia se tornar ou um Estado árabe palestino, ou ser anexado e entregue ao Reino da Jordânia. A Jordânia, por sua vez, acabou desenvolvendo uma postura ambivalente em relação aos esforços da ONU: por um lado, ofereciam a ela uma possível expansão de seu árido reino com a incorporação de partes férteis da Palestina; por outro, o país não desejava ser visto como traidor da causa palestina. O dilema se acentuou ainda mais quando as lideranças judaicas ofereceram um acordo aos hachemitas jordanianos. De certo modo, foi mais ou menos assim que a Palestina acabou dividida entre o movimento sionista e a Jordânia após a guerra de 1948[23].
Os sionistas, contudo, não tinham controle absoluto sobre o UNSCOP. O comitê, que deliberou sobre a solução entre fevereiro e novembro de 1947, revisou os planos sionistas. O UNSCOP expandiu a área destinada aos palestinos e insistiu na criação de dois Estados independentes. Sua esperança implícita era que os dois Estados formassem uma união econômica e estabelecessem uma política conjunta de imigração, e que cada comunidade tivesse a opção de votar no outro Estado caso assim desejasse. Como mostram os documentos que tiveram o sigilo levantado, as lideranças sionistas aceitaram o novo mapa e os termos oferecidos pela ONU porque sabiam que o outro lado rejeitaria o plano. Também sabiam que a divisão final do território seria determinada pelas ações concretas no país, e não pelas negociações em um escritório do comitê[24]. O resultado mais importante foi a legitimação internacional do Estado judeu, incluindo os limites territoriais do futuro Estado. Em retrospecto, podemos observar que, da perspectiva dos lideres sionistas em 1948, eles adotaram a abordagem correta ao estabelecer um Estado sem fixar suas fronteiras.
Os lideres não ficaram ociosos entre o plano de partição e o final do Mandato em maio de 1948. Eles precisaram se manter ativos. A pressão sobre os governos do mundo árabe para o uso da força contra o novo Estado judeu vinha crescendo. No meio tempo, dentro da Palestina, grupos paramilitares locais começaram a empreender ataques, sobretudo contra os meios de transportes dos judeus e colônias isoladas, tentando se antecipar à implementação de uma decisão internacional de transformar sua pátria em um Estado judeu. Esses momentos de resistência foram bastante pontuais e minguaram nas semanas após o anúncio da partição da ONU. Ao mesmo tempo, os lideres sionistas agiam em três frentes discretas. A primeira envolvia a preparação para a possibilidade de uma invasão militar pelos países árabes. Isso aconteceu, e hoje sabemos que o exército judeu se beneficiou da falta de real preparo, determinação e coordenação das forças árabes. As elites políticas árabes ainda relutavam bastante em interferir na Palestina. Havia um acordo tácito com a Jordânia de que ela assumiria partes da Palestina (o que mais tarde se tornaria a Cisjordânia) em troca de uma participação limitada nos esforços de guerra. Isso se mostrou um fator crucial para o equilíbrio de poder. O exército jordaniano era o mais bem treinado no mundo árabe.
Na frente diplomática, os meses de fevereiro e março de 1948 foram um período de particular tensão para o movimento sionista. Os Estados Unidos, representados por seus enviados ao local, perceberam que o plano de divisão da ONU de novembro de 1947 era problemático. Ao invés de levar calma e esperança ao país, o plano era em si a causa principal dos recentes episódios de violência. Já havia relatos de palestinos sendo forçados a deixar suas casas e de assassinatos nos dois grupos. Os dois lados atacaram os transportes públicos do outro; escaramuças nas linhas que separavam bairros árabes e judeus nas cidades mistas perduraram por alguns dias. O presidente dos EUA, Harry Truman, concordou em reconsiderar a ideia de partição e sugeriu um novo plano. Por meio de seu embaixador na ONU, ele propôs uma gestão internacional de todo o território palestino durante cinco anos, para que tivessem mais tempo para buscar uma solução.
Esse movimento foi interrompido abruptamente por interesses particulares. Foi a primeira vez que o lobby judeu nos Estados Unidos foi acionado para mudar a posição do governo estadunidense. O AIPAC ainda não existia, mas o método já estava em curso para conectar o cenário político doméstico estadunidense aos interesses do sionismo e, mais tarde, de Israel na Palestina. De qualquer modo, funcionou, e o governo dos EUA voltou a apoiar o plano de partição. O interessante é que a União Soviética foi ainda mais leal a postura sionista e não demonstrou nenhuma hesitação. Com o auxílio de membros do Partido Comunista Palestino (PCP), eles facilitaram o fornecimento de armas da Tchecoslováquia para forças judaicas antes e depois de maio de 1948. Os leitores de hoje talvez estranhem isso, mas o apoio do PCP à causa sionista era possível por duas razões. A primeira é que a União Soviética acreditava que o novo Estado judeu seria socialista e anti-britânico (e, portanto, mais inclinado ao Bloco Oriental na Guerra Fria emergente). A segunda é que o PCP acreditava que a libertação nacional era uma etapa necessária no caminho para uma revolução social mais completa, e considerava tanto os palestinos como os sionistas movimentos nacionais (é por isso que o partido ainda hoje apoia a solução de dois Estados)[25].
Enquanto lutavam para garantir aprovação internacional, as lideranças sionistas estavam ocupadas preparando sua comunidade para a guerra, impondo a conscrição e o pagamento de taxas compulsórias, intensificando o treinamento militar e ampliando a compra de armamentos. Elas também foram bastante eficientes em reunir material de inteligência que expunha a falta de preparo no resto do mundo árabe. Trabalhar em duas frentes — militar e diplomática — não distraiu os lideres do movimento de sua estratégia para a questão que consideravam mais importante: criar um Estado ao mesmo tempo democrático e judeu na porção da Palestina em que conseguissem colocar as mãos. Ou, posto de outra forma: o que fazer com a população palestina em um futuro Estado judeu?
As muitas deliberações acerca dessa questão acabaram em 10 de marco de 1948, quando o alto comando produziu o famoso Plano Dalet, Plano D, que indicava o destino dos palestinos moradores das áreas que seriam ocupadas pelas forças judaicas. Os debates foram conduzidos pelo líder da comunidade judaica, David Ben-Gurion, que estava determinado a garantir exclusividade demográfica para os judeus em qualquer Estado futuro. Essa obsessão orientou seus atos não só antes de 1948, mas também durante muito tempo após a criação do Estado de Israel. Como veremos, isso o levou a orquestrar a limpeza étnica da Palestina em 1948 e a se opor à ocupação da Cisjordânia em 1967.
Nos dias imediatamente após a Resolução de Partição ser adotada, Ben-Gurion disse a seus colegas de liderança que um Estado judeu onde os judeus representavam apenas 60 por cento da população não seria viável. Todavia ele não revelou que porcentagem de palestinos tornaria o futuro Estado inviável. Mesmo assim, a mensagem que passou aos seus generais — e, por meio deles, as tropas no campo de batalha — foi clara: quanto menos palestinos em um Estado judeu, melhor. E por isso que, como provaram pesquisadores palestinos como Nur Masalha e Ahmad Sa’di, ele também tentou se livrar dos palestinos que permaneceram dentro do Estado judeu após a guerra (“a minoria árabe[26]”).
Outro acontecimento do período entre 29 de novembro de 1947 (adoção da resolução da ONU) e 15 de maio de 1948 (término do Mandato Britânico) ajudou o movimento sionista a se preparar melhor para os dias vindouros. Conforme se aproximava o fim do Mandato, as forças britânicas se retiravam através do porto de Haifa. Sempre que desocupavam um território, as forças da comunidade judaica tomavam conta dele, removendo a população local antes mesmo do fim do Mandato. O processo começou com alguns vilarejos em fevereiro de 1948 e culminou em abril com a limpeza étnica de Haifa, Jaffa, Safad, Beisan, Acre e Jerusalém Ocidental. Essas ultimas etapas já haviam sido sistematicamente planejadas como parte do plano principal, o Plano D, preparado junto ao alto comando do Haganá, principal ala militar da comunidade judaica. O plano incluía as seguintes referências inequívocas quanto aos métodos a serem empregados no processo de limpeza étnica da população:
Destruição de vilarejos (atear fogo, explodir e plantar minas entre os destroços), sobretudo dos centros populacionais de difícil controle continuado [...]
Estruturação de operações de busca e controle de acordo com as seguintes diretrizes: cercar o vilarejo e conduzir uma busca em seu interior. No caso de resistência, a força armada deve ser destruída e a população precisa ser expulsa para fora dos limites do Estado[27].
Como o pequeno exército israelense pode dar cabo de operações de limpeza étnica em grande escala enquanto, desde 15 de maio, também se confrontava com as forças regulares do mundo árabe? Em primeiro lugar, cabe apontar que a população urbana (a exceção de três cidades: Lydd, Ramleh e Bir Saba) já havia sido expulsa antes da chegada dos exércitos árabes. Em segundo lugar, a área rural palestina já estava sob controle israelense, e os confrontos com os exércitos árabes ocorreram nas divisas dessas áreas rurais, e não dentro delas. Em dada ocasião, em Lydd e Ramleh, quando os jordanianos poderiam ter ajudado os palestinos, o comandante britânico do exército jordaniano, Sir John Glubb, decidiu recuar e evitar o confronto com o exército israelense[28]. Por fim, o esforço militar árabe foi lamentavelmente ineficaz e pouco duradouro. Após algum sucesso nas primeiras três semanas, sua presença na Palestina se converteu em uma história atabalhoada de derrotas e recuos apressados. Assim, após uma breve trégua perto do final de 1948, a limpeza étnica israelense continuou inabalável.
Hoje, desde o nosso ponto de vista privilegiado, não há como definir as ações israelenses dentro da Palestina senão como crime de guerra. Na verdade, como crime contra a humanidade. Se ignorarmos esse duro fato, jamais entenderemos o que há por trás da postura deIsrael em relação à Palestina, à sociedade e ao sistema político palestinos. O crime cometido pelas lideranças do movimento sionista, que se tornaram o governo de Israel, foi o de limpeza étnica. Não se trata de mera retórica, mas de uma acusação com implicações morais, políticas e legais de grande impacto. A definição deste crime foi esclarecida após a guerra civil dos Balcãs nos anos 1990: limpeza étnica é qualquer ação movida por um grupo étnico que deseja expulsar outro grupo étnico com o propósito de transformar uma região mulltiétnica em pura. Essa ação configura limpeza étnica, independentemente dos métodos empregados para alcançá-la — seja persuasão, ameaças, expulsões ou grandes massacres.
Além disso, o ato em si determina a definição; assim sendo, certas políticas foram consideradas limpeza étnica pela comunidade internacional, mesmo quando não se descobriu ou expôs um plano central para a sua execução. Por consequência, as vítimas de limpeza étnica incluem tanto pessoas que deixaram sua casa por medo como aquelas expulsas a força por uma operação continua. As definições e referências aqui relevantes podem ser encontradas em sites como o do Departamento de Estado dos EUA e o das Nações Unidas[29]. Essas são as principais definições que guiam o tribunal internacional em Haia quando lhe cabe julgar os responsáveis por planejar e executar tais operações.
Um estudo dos escritos e pensamentos dos primeiros lideres sionistas revela que, em 1948, esse crime era inevitável. O objetivo do sionismo não havia mudado: tomar a maior parte possível do Mandato da Palestina e remover a maioria dos vilarejos e bairros urbanos palestinos do espaço delineado para o futuro Estado judeu. A execução foi ainda mais sistemática e abrangente do que o plano previa. Em questão de sete meses, 531 vilarejos foram destruídos e onze bairros urbanos, esvaziados. A expulsão em massa foi acompanhada de massacres, estupros e confinamento de homens acima de dez anos em campos de trabalho por períodos superiores a um ano[30].
A implicação política disso é que Israel é o único culpado pela criação do problema dos refugiados palestinos, pelo qual é responsável legal e moral. A implicação legal é que, mesmo havendo limitações estatuárias após um período tão longo para aqueles que perpetraram um ato entendido como crime contra a humanidade, o ato em si continua sendo um crime pelo qual ninguém jamais foi levado a julgamento. A implicação moral é que o Estado judeu nasceu do pecado — como tantos outros Estados, é claro —, mas o pecado, ou o crime, jamais foi admitido. Ainda pior, em alguns círculos de Israel isso é reconhecido, mas, ao mesmo tempo, totalmente justificado tanto em retrospectiva quanto como uma política futura contra os palestinos, onde quer que estejam. O crime ainda é cometido hoje.
Todas essas implicações foram completamente ignoradas pela elite política israelense. Ao invés disso, uma lição muito diferente foi aprendida com os acontecimentos de 1948: que é possível, enquanto Estado, expulsar metade da população de um país, destruir metade de seus vilarejos e sair impune. A consequência dessa lição, logo depois de 1948 e em tempos futuros, era inevitável: a continuidade da política de limpeza étnica por outros meios. Houve alguns marcos bem conhecidos nesse processo: a expulsão de mais aldeões entre 1948 e 1956 de Israel propriamente dito; a transferência forçada de 300 mil palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza durante a guerra de 1967; e uma remoção muito calculada, e constante, dos palestinos residentes na área da Grande Jerusalém — uma estimativa de mais de 250 mil pessoas até o ano 2000.
Após 1948, a política de limpeza étnica assumiu muitas formas. Em diversas partes dos territórios ocupados e dentro de Israel, a política de expulsão foi substituída pela proibição de que as pessoas deixassem seus bairros ou vilarejos. O confinamento dos palestinos ao local de residência servia ao mesmo propósito que a expulsão. Quando estão cercados em enclaves — como nas áreas A, B e C da Cisjordânia, sob o Acordo de Oslo, ou em vilarejos e bairros de Jerusalém declarados parte da Cisjordânia, ou no Gueto de Gaza — eles não sido contabilizados demograficamente, nem nos censos oficiais nem nos informais, que é o que interessa para os estrategistas políticos israelenses.
Enquanto as implicações plenas das políticas de limpeza étnica passadas e presentes de Israel não forem reconhecidas e combatidas pela comunidade internacional, não haverá solução para o conflito israelo-palestino. Ignorar a questão dos refugiados palestinos sabotará reiteradamente qualquer tentativa de reconciliar as duas partes conflitantes. Por isso é tão importante reconhecer os acontecimentos de 1948 como operação de limpeza étnica, de modo a garantir que uma solução política não ira ignorar a raiz do conflito; a saber, a expulsão dos palestinos. No passado, essa omissão foi o motivo principal para o fracasso de todos os acordos de paz tentados.
Se as lições legais não forem aprendidas, sempre perdurarão impulsos de revide e um desejo de vingança do lado palestino. O reconhecimento legal da Nakba de 1948 como ato de limpeza étnica pavimentaria o caminho para alguma forma de justiça restauradora. Seria como o processo recente ocorrido na Africa do Sul. A admissão da maleficência passada não é feita com o intuito de entregar os criminosos à justiça, mas antes de submeter o crime em si à atenção e ao julgamento do público. A decisão final não sera punitiva — não haverá punição —, mas antes restaurativa: as vítimas serão compensadas. A compensação mais razoável para o caso especifico dos refugiados palestinos já foi apontada de forma explicita em dezembro de 1948 pela Assembleia Geral da ONU em sua Resolução 194: 0 retorno incondicional dos refugiados e de suas famílias à sua pátria (e, nos casos em que for possível, as suas casas). Sem essa restituição, o Estado de Israel continuará sendo um enclave hostil no coração do mundo Árabe, o último lembrete de um passado colonialista que complica a relação de Israel não só com os palestinos, mas com o mundo árabe como um todo.
E importante notar, contudo, que há judeus em Israel que absorveram todas essas lições. Nem todos os judeus são indiferentes ou ignorantes em relação a Nakba. Hoje eles não se restringem a uma pequena minoria, mas a um grupo cuja presença se faz sentir, demonstrando que ao menos parte dos cidadãos judeus não é surda perante o choro, a dor e a devastação dos assassinados, estuprados ou feridos durante 1948. Eles estado cientes dos milhares de cidadãos palestinos detidos e aprisionados nos anos 1950, e reconhecem o massacre de Kafr Qasim em 1956, quando cidadãos do Estado foram assassinados pelo exército apenas por serem palestinos. Eles sabem dos crimes de guerra cometidos ao longo da guerra de 1967 e do bombardeio impiedoso de campos de refugiados em 1982. Eles não esqueceram das violações físicas infligidas a jovens palestinos nos territórios ocupados dos anos 1980 em diante. Esses judeus israelenses não ignoram os acontecimentos e ainda hoje podem escutar as vozes dos oficiais militares que ordenaram a execução de pessoas inocentes e as risadas dos soldados que assistiam, imóveis.
Eles também podem ver os escombros dos 531 vilarejos destruídos e dos bairros arruinados. Veem o que todos os israelenses podem ver, mas em sua maioria preferem não fazê-lo: os vestígios de vilarejos sob as casas dos kibutzim e sob os pinheiros das florestas do Fundo Nacional Judaico (FNJ). Eles não esqueceram o que aconteceu, mesmo quando o resto da sociedade o fez. Talvez por isso entendam totalmente a conexão entre a limpeza étnica de 1948 e os acontecimentos que perduram até os dias de hoje. Reconhecem a ligação entre os heróis da guerra de independência de Israel e aqueles que comandaram a repressão cruel das duas Intifadas. Jamais tomaram Yitzhak Rabin ou Ariel Sharon por heróis da paz. Também se recusam a ignorar as conexões óbvias entre a construção do muro e uma política mais ampla de limpeza étnica. As expulsões de 1948 e o confinamento de pessoas entre muros hoje são consequências inevitáveis da mesma ideologia étnica racista. Eles tampouco deixam de reconhecer a ligacão entre as ações desumanas infligidas em Gaza desde 2006 e essas práticas e políticas do passado. Tamanha desumanidade não surge no vácuo, tem uma história e uma infraestrutura ideológica que a justifica.
Dado que as lideranças políticas palestinas negligenciaram esse aspecto do conflito, é a sociedade civil palestina que tem guiado esforços para recolocar os acontecimentos de 1948 no centro da agenda nacional. Dentro e fora de Israel, ONGs palestinas como BADIL, ADRID e Al-Awda coordenam sua luta para preservar a memória de 1948 e explicar por que é crucial se engajar nos acontecimentos daquele ano em prol do futuro.
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Dez mitos sobre Israel, Ilan Pappé MOC
Nur Masalha, Expulsão dos palestinos: o conceito de “transferência” no pensamento político sionista, 1882-1948, São Paulo: Monitor do Oriente, 2021. ↩︎
Ver Anita Shapira, Land and Power, Nova York: Oxford University Press, 1992, pp. 285-6. ↩︎
Citado em David Ben-Gurion, The Roads of Our State, Am Oved: Tel Aviv, 1938, pp. 179-80 (em hebraico). ↩︎
Ibid. ↩︎
Ver a carta traduzida disponível em: <palestineremembered.com>. ↩︎
Yosef Gorny, The Arab Question and the Jewish Problem, Am Oved: Tel Aviv, 1985, p. 433 (em hebraico). ↩︎
Benny Morris, Righteous Victims: A History of the Zionist-Arab Conflict, 1881-1999, Nova York: Random House, 2001, p. 142. ↩︎
Nur Masalha, Expulsão dos palestinos, p. 117. ↩︎
Ver relatório de Eric Bender em Maariv, 31 de marco de 2008. ↩︎
Berl Katznelson, Writings, Tel Aviv: Davar, 1947, V. 5, p. 112. ↩︎
Central Zionist Archives, Minutes of the Jewish Agency Executive, 7 de maio de 1944, pp. 17-9. ↩︎
Central Zionist Archives, Minutes of the Jewish Agency Executive, 12 de junho de 1938, pp. 31-2. ↩︎
Ibid. ↩︎
Ibid. ↩︎
Shay Hazkani, “Catastrophic Thinking: Did Ben-Gurion Try to Re-write History>”, Haaretz, 16 de maio de 2013. ↩︎
Ibid. ↩︎
Ibid. ↩︎
A primeira pessoa a refutar essas afirmac6es foi o jornalista irlandés Erskine Childs no The Spectator, em 12 de maio de 1961. ↩︎
Ilan Pappe, “Why were they Expelled?: The History, Historiography and Relevance of the Refugee Problem”, in: Ghada Karmi e Eugene Cortan (eds.), The Palestinian Exodus, 1948-1988, Londres: Ithaca, 1999, pp. 37-93. ↩︎
Ver Ilan Pappe, A limpeza étnica da Palestina. ↩︎
Avi Shlaim, A muralha de ferro: Israel e o Mundo Árabe, Rio de Janeiro: Fissus, 2004. ↩︎
Ibid. ↩︎
Avi Shlaim, Collusion Across the Jordan: King Abdullah, the Zionist Movement and the Partition of Palestine, Nova York: Columbia University Press, 1988. ↩︎
Simha Flapan provou isso de forma bastante convincente em The Birth of Israel: Myths and Realities, Nova York: Pantheon, 1988. ↩︎
Materiais novos e mais aprofundados sobre essa guinada foram apresentados em um livro recente de Irene Gendzier, Dying to Forget: Oil, Power, Palestine, and the Foundations of US Policy in the Middle East, Nova York: Columbia University Press, 2015. ↩︎
Ahmad Sa’di, “The Incorporation of the Palestinian Minority by the Israeli State, 1948-1970: On the Nature, Transformation and Constraints of Collaboration”, Social Text, 21:2, 2003, pp. 75-94. ↩︎
Walid Khalidi, “Plan Dalet: Master Plan for the Conquest of Palestine”, Journal of Palestine Studies, 18:1, 1988, PP. 4-33- ↩︎
Benny Morris, The Birth of the Palestinian Refugee Problem Revisited, Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 426. ↩︎
Departamento de Estado dos EUA, Special Report on Ethnic Cleansing, 10 de maio de 1999. ↩︎
Detalho isso em A limpeza étnica da Palestina. ↩︎