Os judeus eram um povo sem terra
Dez mitos sobre Israel
-- Ilan Pappe
2 Os judeus eram um povo sem terra
A afirmação apresentada no capítulo anterior, segundo a qual a Palestina era uma terra sem povo, anda de mãos dadas com a afirmação de que os judeus eram um povo sem terra.
Mas os colonos judeus eram um povo? Estudos acadêmicos recentes reiteraram algumas dúvidas acerca disso já articuladas muitos anos atrás. O tema comum dessa abordagem crítica é melhor resumido em A invenção do povo judeu, de Shlomo Sand[1]. Sand mostra que, em dado momento da história moderna, o mundo cristão, agindo por interesse próprio, apoiou a ideia de que os judeus seriam uma nação que devia retornar um dia a Terra Santa. Segundo esse raciocínio, tal retorno faria parte do esquema divino para o fim dos tempos, assim como a ressureição dos mortos e a Segunda Vinda do Messias.
As reviravoltas teológicas e religiosas causadas pela Reforma a partir do século XVI geraram uma associação clara, sobretudo para os protestantes, entre a ideia de fim do milênio, a conversão dos judeus e seu retorno à Palestina. Thomas Brightman, clérigo inglês do século XVI, representou esses preceitos ao escrever: “Devem eles retornar a Jerusalém outra vez? Não hácerteza maior: os profetas de todos os cantos confirmam e falam sobre isso[2]. Brightman não só esperava que a promessa divina fosse cumprida, mas também, como tantos depois dele, desejava que os judeus se convertessem ao cristianismo ou deixassem todos a Europa. Cem anos mais tarde, Henry Oldenburg, filósofo da natureza e teólogo alemão, escreveu: “Se a ocasião se apresentar em meio às mudanças as quais estão sujeitas as ações humanas, [os judeus] podem até reerguer seu império, e [...] Deus pode escolhê-los uma segunda vez[3]. Charles-Joseph de Lign, general-marechal de campo austro-húngaro, observou na segunda metade do século XVIII:
Acredito que o judeu não é capaz de assimilar, e que constituíra constantemente uma nação dentro de uma nação, onde quer que esteja. A coisa mais simples a se fazer, em minha opinião, seria devolvê-los a sua pátria, de onde foram afugentados[4].
Como fica bastante claro neste último texto, havia uma ligação óbvia entre essas ideias constitutivas do sionismo e um antissemitismo mais longevo. François-René de Chateaubriand, o famoso escritor e político francês, escreveu por volta da mesma época que os judeus eram “os donos legítimos da Judeia”. Ele influenciou Napoleão Bonaparte, que esperava obter ajuda da comunidade judaica na Palestina, bem como de outros habitantes do território, em sua tentativa de ocupar o Oriente Médio no início do século XIX. Prometeu a eles um “retorno a Palestina” e a criação de um Estado[5]. O sionismo, como podemos ver, foi, portanto, um projeto cristão de colonização antes de se tornar judeu.
Os sinais agourentos de como essas crenças aparentemente míticas e religiosas podiam se converter em um programa real de colonização e expropriação apareceram na Grã-Bretanha Vitoriana já nos anos 1820, quando surgiu um potente movimento teológico e imperial que colocaria o retorno dos judeus à Palestina no centro de um plano estratégico para tomar a Palestina e transformá-la em uma entidade cristã. No século XIX, esse sentimento se tornou mais popular do que nunca na Grã-Bretanha e afetou a política imperial oficial: “O solo da Palestina... apenas aguarda o retorno de seus rebentos banidos e que o emprego da indústria assim como sua capacidade agrícola voltem a vicejar e a propiciar uma exuberância universal, para que o local volte a ser o que foi nos tempos de Salomão[6]. Assim escreveu o fidalgo e comandante militar escocês John Lindsay. Esse sentimento encontrou eco em David Hartley, filósofo inglês que escreveu: “E provável que os judeus sejam reintroduzidos na Palestina[7].
O processo não foi de todo bem-sucedido até receber o apoio dos Estados Unidos, onde também havia um histórico de validação da ideia de uma nação judaica com direito a retornar à Palestina e construir um Sião. No mesmo período em que os protestantes articulavam essas visões na Europa, elas apareciam de maneira similar do outro lado do Atlântico. O presidente estadunidense, John Adams (1735-1826), afirmou: “Desejo verdadeiramente que os judeus retornem à Judeia como nação independente[8]. Uma simples história das ideias nos conduz diretamente dos pais pregadores desse movimento aqueles com o poder para mudar o destino da Palestina. Na dianteira destes se encontrava Lorde Shaftesbury (1801-1885), proeminente político e reformista britânico que fez campanha ativa por uma pátria judaica na Palestina. Seus argumentos em prol de uma maior presença britânica na Palestina eram a um só tempo religiosos e estratégicos[9].
Como demonstrarei em breve, essa perigosa mescla de fervor religioso e zelo reformista nos levaria dos esforços de Shaftesbury em meados do século XIX 4 Declaração Balfour em 1917. Shaftesbury percebeu que no bastaria apoiar o retorno dos judeus: a Grã-Bretanha precisaria ativamente prestar assistência durante o início da colonização. Essa aliança deveria começar, asseverou Shaftesbury, com auxílio material para que os judeus viajassem à Palestina otomana. Ele convenceu o bispado anglicano e a catedral de Jerusalém a custearem o início deste projeto. E provável que isso não tivesse acontecido caso Shaftesbury não houvesse conseguido angariar seu sogro, ministro do exterior e, mais tarde, primeiro-ministro britânico, Lorde Palmerston, para a causa.
Shaftesbury escreveu em seu diário em 1° de agosto de 1838:
Jantei com Palmerston. Deixado a sós com ele após o jantar. Propus meu esquema, que pareceu cativar sua vontade. Ele fez perguntas e logo prometeu ponderar sobre isso [o programa para ajudar os judeus a retornarem à Palestina e assumirem seu controle]. Quão singular é a ordem da Providência. Singular se observada por parâmetros humanos. Palmerston já havia sido escolhido por Deus para ser um instrumento do bem para Seu antigo povo, para prestar homenagem ao seu legado, e para reconhecer seus direitos sem acreditar em seu destino. Parece-me que fará ainda mais. Embora bondosa, a motivação não se basta. Sou forçado a argumentar em termos políticos, financeiros, comerciais. Ele não chora, como seu Mestre, por Jerusalém, tampouco reza para que agora, enfim, ela possa vestir seus belos trajes[10].
Como primeiro passo, Shaftesbury persuadiu Palmerston a nomear seu companheiro restauracionista (um crédulo na restauração da Palestina para os judeus) William Young como primeiro vice-cônsul britânico em Jerusalém. Mais tarde ele escreveu em seu diário: “Que maravilhoso acontecimento! A cidade antiga do povo de Deus está prestes a retomar um espaço entre as nações; e a Inglaterra é o primeiro dos reinos gentios a parar de ‘pisoteá-la'[11]". Um ano mais tarde, em 1839, Shaftesbury escreveu um artigo de trinta páginas para o The London Quarterly Review intitulado “Estado e restauração dos judeus”, em que previu uma nova era para o povo escolhido de Deus. Ele insistia que é preciso encorajar os judeus a retornarem em números ainda maiores e se tornarem outra vez os cultivadores da Judeia e da Galileia [...] embora sejam de fato uma gente cabeça-dura e de coração sombrio, afundada em degradação moral, teimosia e ignorância do Evangelho, [eles são] não apenas dignos da salvação, mas também vitais para a esperança de salvação da Cristandade[12].
O lobby suave de Shaftesbury junto a Palmerston mostrou-se exitoso. Por razões políticas, mais do que religiosas, Palmerston também se tornou um defensor da restauração judaica. Dentre outros fatores que figuraram em suas deliberações havia a visão de que “os judeus poderiam ser úteis no apoio à derrubada do Império Otomano, ajudando-nos assim a atingirmos o principal objetivo da política externa britânica na região[13]. Palmerston escreveu ao embaixador britânico em Istambul em 11 de agosto de 1840 para tratar dos benefícios mútuos para britânicos e otomanos caso os judeus fossem autorizados a retornar à Palestina. Ironicamente, a restauração dos judeus era considerada um meio importante de manter o status quo e evitar a desintegração do Império Otomano. Palmerston escreveu:
Atualmente, existe entre os judeus dispersos pela Europa um forte entendimento de que se aproxima o tempo em que sua nação retornará à Palestina [...] seria de manifesta importância que o sultão estimulasse os judeus a retornarem e se assentarem na Palestina porque a riqueza que levariam consigo ampliaria os recursos dos domínios do sultão; e o povo judeu, contanto que retorne sob sanção e proteção e por convite do sultão, seria um freio para quaisquer vindouros desígnios maléficos de Mehmet Ali ou de seu sucessor [...] devo instruir fortemente Sua Excelência a recomendar [que o governo turco] ofereça todos os incentivos justos para que os judeus da Europa retornem a Palestina[14].
Mehmet Ali, conhecido popularmente como Muhammad Ali, foi o governante do Egito nomeado pelo Império Otomano na primeira metade do século XIX. Palmerston escreveu esta carta a seu embaixador em Istambul após uma década em que o governante egípcio chegara perto de derrubar o próprio sultão. A ideia de que a riqueza exportada à Palestina pelos judeus iria fortalecer o Império Otomano contra potenciais inimigos internos e externos res- salta como o sionismo era associado ao antissemitismo, ao imperialismo britânico e a teologia.
Alguns dias após Lorde Palmerston ter enviado sua carta, um artigo de capa no The Times apresentava um plano “para plantar o povo judeu na terra de seus pais”, afirmando que tal plano se encontrava sob “séria consideração política” e elogiando os esforços de Shaftesbury como autor do plano, que, segundo argumentava, era “prático e digno de um verdadeiro estadista[15]. Lady Palmerston também apoiava a posição do marido. Ela escreveu a uma amiga: “Temos do nosso lado elementos fanáticos e religiosos, e você sabe o séquito que possuem neste pais. Eles estado absolutamente resolutos que Jerusalém e toda a Palestina devem ser reservadas para o retorno dos judeus; eis seu único anseio, restaurar os judeus[16]. O Conde de Shaftesbury foi descrito como “o principal proponente do sionismo cristão no século XIX e o primeiro político de estatura a tentar preparar o terreno para que os judeus estabelecessem uma pátria na Palestina[17].
Esse momento de entusiasmo do establishment britânico com a ideia da restauração deveria ser propriamente descrito como protossionismo. Embora devamos ter cuidado ao atribuir ideologias contemporâneas a um fenômeno do século XIX, é inegável que já estavam ali todos os ingredientes que transformariam essas ideias em justificativa futura para erradicar e negar os direitos básicos da população autóctone da Palestina. Claro que também havia clérigos e igrejas que se identificavam com os palestinos nativos. Destacava-se entre eles George Francis Popham Blyth, clérigo da Igreja da Inglaterra que, com alguns colegas anglicanos com cargos elevados, desenvolveu forte empatia pelos anseios e direitos palestinos. Em 1887, Blyth fundou o St. George College, que nos dias de hoje ainda é provavelmente um dos melhores colégios de ensino médio em Jerusalém Oriental (frequentado por filhos da elite local, que desempenhariam um papel crucial na política palestina durante a primeira metade do século XX). O poder, contudo, estava nas mãos daqueles que apoiavam a causa judaica, que mais tarde passaria a ser chamada de causa sionista.
O primeiro consulado britânico em Jerusalém foi inaugurado em 1838. Dentre seus propósitos estava o estímulo informal (com a promessa de proteção) para que os judeus viessem à Palestina; em alguns casos, também havia a tentativa de convertê-los ao cristianismo. O mais conhecido dos primeiros cônsules foi James Finn (1806-1872), que, em razão de sua personalidade e abordagem direta, fez com que fosse impossível esconder dos palestinos as implicações desses propósitos. Ele escreveu abertamente, e é provável que tenha sido o primeiro a fazê-lo, sobre a relação entre o retorno dos judeus à Palestina e o possível deslocamento dos palestinos como resultado[18]. Essa relação estaria no centro do projeto sionista de colonização de povoamento durante o século seguinte.
Finn ocupou o posto em Jerusalém de 1845 a 1863. Ele foi enaltecido por historiadores israelenses posteriores por ter ajudado os judeus a se instalarem em suas terras ancestrais, e seu livro de memórias foi traduzido para o hebraico. Finn não é a única personalidade, ao longo da história, a figurar no panteão de uma nação e no rol de vigaristas de outra. Ele detestava o Islã como um todo, e os notáveis de Jerusalém em particular. Jamais aprendeu árabe e se comunicava por intermédio de um intérprete, o que em nada ajudou a suavizar sua relação com a população local palestina.
Finn foi ajudado pela inauguração do bispado anglicano de Jerusalém em 1841, conduzido por Michael Solomon Alexander (um convertido do judaísmo), e pela inauguração da Igreja de Cristo, a primeira igreja anglicana, perto do Portão de Jaffa, Jerusalém, em 1843. Embora mais tarde essas instituições tenham desenvolvido uma forte afinidade com o direito palestino à autodeterminação, à época elas apoiavam os anseios protossionistas de Finn. O cônsul trabalhou com mais afinco do que qualquer outro europeu para estabelecer uma presença ocidental permanente em Jerusalém, organizando a compra de terras e imóveis para missionários, interesses comerciais e órgãos governamentais.
Um importante elo entre esses primeiros ramos do sionismo cristão, principalmente o britânico, e o sionismo foi o movimento do Templo Alemão Pietista (conhecidos mais tarde como “templadores”), ativo na Palestina desde os anos 1860 até a irrupção da Primeira Guerra Mundial. O movimento pietista surgiu do movimento luterano, que se espalhou da Alemanha para o mundo todo, inclusive para a América do Norte (onde sua influência nos primeiros assentamentos coloniais se faz sentir até hoje). Seu interesse na Palestina ganhou força em torno dos anos 1860. Dois clérigos alemães, Christoph Hoffman e Georg David Hardegg, fundaram a Sociedade de Templer em 1861. Eles tinham fortes laços com o movimento pietista em Wiirttemberg, na Alemanha, mas desenvolveram suas próprias ideias quanto à melhor maneira de executar sua versão do cristianismo. Para os clérigos, a reconstrução de um templo judeu em Jerusalém era um passo essencial no esquema divino de redenção e absolvição. Ainda mais importante: ambos estavam convencidos de que, instalando-se eles próprios na Palestina, poderiam desencadear a Segunda Vinda do Messias[19]. Embora nem todos nas respectivas igrejas e organizações nacionais recebessem bem sua prática tão particular de traduzir o pietismo em colonialismo de povoamento na Palestina, membros veteranos da corte real da Prússia e diversos teólogos anglicanos na Grã-Bretanha apoiaram seu dogma com entusiasmo.
Conforme ganhou proeminência, o movimento dos templadores começou a ser perseguido pela maior parte da igreja estabelecida na Alemanha. Mas eles transpuseram suas ideias para uma instância mais prática e se instalaram na Palestina — enfrentando lutas internas ao longo do caminho, e também incorporando novos membros. Lá, fundaram sua primeira colônia no Monte Carmelo, em Haifa, em 1866, e se espalharam por outras partes do país. A aproximação entre o Kaiser Guilherme II e o sultão, na reta final do século XIX, fortaleceu ainda mais seu projeto de assentamentos. Os pietistas permaneceram na Palestina sob o Mandato Britânico até 1948, quando foram expulsos pelo novo Estado judeu.
As colônias e os métodos de assentamentos dos templadores foram replicados pelos primeiros sionistas. Embora o historiador alemão Alexander Schiélch tenha descrito os esforços colonizadores dos alemães como “A Cruzada Silenciosa”, as colônias sionistas pioneiras estabelecidas a partir de 1882 poderiam ser chamadas de qualquer coisa, menos de silenciosas[20]. Quando os templadores se instalaram na Palestina, o sionismo já havia se tornado um movimento político notório na Europa. O sionismo era, em resumo, um movimento para o qual a colonização da Palestina e a criação de um Estado judeu na região seriam a solução para os problemas dos judeus na Europa. Essas ideias germinaram nos anos 1860 em diversos locais da Europa, inspiradas pelo Iluminismo, pela “Primavera dos Povos” de 1848 e, mais tarde, pelo socialismo. De um exercício cultural e intelectual, o sionismo foi transformado em um projeto político através da visão de Theodor Herzl, que reagia a uma onda particularmente vil de perseguição aos judeus na Rússia entre o final dos anos 1870 e início dos 1880 e ao crescimento do nacionalismo antissemita na Europa ocidental (onde o conhecido Caso Dreyfus revelou como eram profundas as raízes do antissemitismo nas sociedades francesa e alemã).
Graças aos esforços de Herzl e de lideranças judaicas que pensavam como ele, o sionismo se tornou um movimento reconhecido internacionalmente. Um grupo de judeus do leste europeu também desenvolveu, de forma independente (no início), uma visão semeIhante sobre a solução para a questão judaica na Europa, e não esperou por reconhecimento internacional. O grupo começou a se instalar na Palestina em 1882, após prepararem terreno trabalhando em comunas dos seus países natais. No jargão sionista, eles são chamados de Primeira Aliyah — a primeira onda de imigração sionista, que se estendeu até 1904. A segunda onda (1905-14) foi diferente, pois era composta sobretudo de comunistas e socialistas desiludidos que agora viam no sionismo não apenas a solução para o problema judaico, mas também uma ponta de lança do comunismo e do socialismo com seus assentamentos coletivos na Palestina. Em ambas as ondas, contudo, a maioria preferiu se assentar em cidades palestinas, e apenas uns poucos tentaram cultivar as terras que compraram dos palestinos e de latifundiários árabes ausentes, contando com a ajuda inicial de industriais judeus da Europa para sustentá-los até atingirem maior independência econômica.
Embora, no fim das contas, as conexões dos sionistas com a Alemanha tenham se mostrado insignificantes, a relação com a Grã-Bretanha foi decisiva. De fato, o movimento sionista precisava de um respaldo de peso, pois o povo da Palestina começou a perceber que aquele modelo específico de imigração não trazia bons auspícios para o seu futuro no país. Lideres locais sentiram que o impacto para a sociedade seria muito negativo. Um deles foi o mufti de Jerusalém, Tahir al-Husayni II, que relacionou a imigração de judeus para Jerusalém a um questionamento à santidade muçulmana da cidade por parte dos europeus. Alguns de seus predecessores haviam apontado que James Finn pretendia associar a chegada dos judeus à restauração da glória dos cruzados. Não é de se espantar, portanto, que o mufti tenha liderado a oposição a essa imigração, enfatizando especialmente a necessidade de limitar a venda de terras para esses projetos. Para ele, a posse de terras corroboraria reivindicações de propriedade, enquanto a imigração sem assentamentos poderia ser encarada como peregrinação transitória[21].
Assim, em muitos sentidos, o impulso estratégico imperial da Grã-Bretanha de explorar o retorno dos judeus à Palestina para aprofundar a influência de Londres na “Terra Santa” coincidiu com o surgimento de novas visões culturais e intelectuais em torno do sionismo na Europa. Com isso, tanto para os cristãos como para os judeus, a colonização da Palestina foi vista como um ato de retorno e redenção. A coincidência desses dois impulsos resultou em uma poderosa aliança, que converteu a ideia antissemita e milenarista de transferência dos judeus da Europa para a Palestina em um verdadeiro projeto de assentamento, em detrimento do povo nativo da Palestina. Essa aliança passou a ser de conhecimento publico com a proclamação da Declaração Balfour em 2 de novembro de 1917 — uma carta do secretário de assuntos exteriores da Grã-Bretanha aos lideres da comunidade anglo-judaica, prometendo a eles pleno apoio para a criação de uma pátria judaica na Palestina.
Graças à acessibilidade e à estrutura eficiente dos arquivos britânicos, fomos agraciados nas últimas décadas com diversos trabalhos acadêmicos excelentes que esmiuçam os bastidores dessa declaração. Dentre os melhores está um ensaio de 1970 escrito por Mayer Verte, da Universidade Hebraica de Jerusalém[22]. Ele demonstrou especificamente como os oficiais britânicos asseveraram, de forma equivocada, que os judeus integrantes do movimento bolchevique tinham aspirações semelhantes às dos sionistas, e portanto uma declaração pró-sionista pavimentaria o caminho para o estabelecimento de boas relações com o novo poder político na Rússia. Mais relevante aqui é a suposição, por parte dos formuladores de políticas, de que esse gesto seria bem recebido pelos judeus estadunidenses — que, suspeitavam os britânicos, teriam grande influência em Washington. Havia também uma mescla de quiliasmo e islamofobia: David Lloyd George, primeiro-ministro à época e cristão devoto, favoreceu o retorno dos judeus por convicções religiosas, e do ponto de vista estratégico tanto ele como seus colegas preferiam uma colônia judaica a uma muçulmana (como eram rotulados os palestinos) na Terra Santa.
Em tempos recentes, tivemos acesso a uma análise ainda mais abrangente, escrita em 1939, Mas que passou muitos anos desaparecida até ressurgir em 2013. Trata-se do trabalho do jornalista britânico, J. M. N. Jeffries, Palestine: The Reality, que em suas mais de 700 páginas explica o que estava por trás da Declaração Balfour[23]. Lançando mão de suas conexões pessoais e de seu acesso a uma vasta gama de documentos hoje perdidos, Jeffries explica exatamente quais membros do governo, exército e almirantado britânicos trabalhavam em prol da declaração e por quê. Ao que parece, os cristãos pró-sionistas de sua história estavam muito mais entusiasmados do que os próprios sionistas com a ideia de um patrocinio britânico para o processo de colonização na Palestina.
A conclusão de todas as pesquisas conduzidas até hoje acerca da declaração é que os diversos estrategistas políticos da Grã-Bretanha consideravam a existência de uma pátria judaica na Palestina compatível com os interesses britânicos na região. Após a ocupação da Palestina pelo Reino Unido, essa aliança permitiu que os judeus construíssem a infraestrutura para um Estado judeu sob auspícios britânicos, protegido pelas baionetas do governo de Sua Majestade.
Mas não foi fácil tomar a Palestina. A campanha britânica contra os turcos durou quase todo o ano de 1917. Começou bem, com as forças britânicas adentrando agressivamente a península do Sinai, mas elas foram logo freadas por uma constritiva guerra de trincheiras nas linhas entre a Faixa de Gaza e Bir Saba. Quando venceram a resistência, tudo ficou mais fácil — na verdade, Jerusalém se entregou sem lutar. A ocupação militar subsequente levou três processos distintos — a emergência do sionismo, o quiliarismo protestante e o imperialismo britânico — às terras palestinas por meio de uma poderosa fusão de ideologias que destruiu o país e seu povo durante os trinta anos seguintes.
Há quem goste de questionar se os judeus que se instalaram na Palestina como sionistas na esteira de 1918 descendiam mesmo dos judeus exilados por Roma dois mil anos antes. Esse questionamento teve início com dúvidas populares evocadas por Arthur Koestler (1905-1983), autor de The Tirteenth Tribe (1976), livro em que desenvolve a teoria de que os colonos judeus eram descendentes dos cazares, nação turca do Cáucaso que se converteu ao judaísmo no século VIII e, mais tarde, foi forçada a migrar para oeste[24]. Desde então cientistas israelenses tentam provar que há uma conexão genética entre os judeus da Palestina romana e os atuais ocupantes de Israel. No entanto, o debate segue em curso.
Análises mais sérias provêm de estudiosos bíblicos não influenciados pelo sionismo, como Keith Whitelam, Thomas Thompson e o acadêmico israelense Israel Finkelstein, todos opositores do emprego da Bíblia como relato factual relevante[25]. Whitelam e Thompson também duvidam da existência de qualquer coisa semelhante a uma nação nos tempos bíblicos e, assim como outros, criticam o que chamam de “invenção do Israel moderno” como obra de teólogos cristãos favoráveis ao sionismo. A desconstrução mais recente e atualizada dessa ideia veio com dois livros de Shlomo Sand, A invenção do povo judeu e A invenção da Terra de Israel[26], Respeito e admiro esse esforço acadêmico. Politicamente, contudo, considero-o menos significativo do que a hipótese que nega a existência dos palestinos (embora ele seja um complemento dessa hipótese). Os povos têm o direito de se inventarem, como fizeram tantos movimentos nacionais em seu momento de concepção. Mas o problema se agrava quando a narrativa de gênese engendra projetos políticos como genocídio, limpeza étnica e opressão.
No caso específico das alegações do sionismo do século XIX, o importante não é a sua precisão histórica — não importa se os atuais judeus de Israel são descendentes autênticos dos que viveram ali nos tempos romanos —, mas antes a insistência do Estado de Israel em se dizer representante de todos os judeus do mundo, que faria tudo o que faz em seu nome e para o seu bem. Até 1967, essa alegação foi muito útil para o Estado de Israel. Judeus ao redor do mundo, e em especial nos Estados Unidos, tornaram-se seus principais apoiadores sempre que alguma de suas políticas era questionada. Em muitos aspectos, isso ainda ocorre nos Estados Unidos de hoje. Contudo, tanto lá como em outras comunidades judaicas, essa associação automática vem sendo contestada.
O sionismo, como veremos no próximo capítulo, foi na sua origem uma opinião minoritária entre os judeus. Ao argumentar que os judeus eram uma nação que pertencia à Palestina e, portanto, deveriam ser auxiliados em seu retorno para lá, os sionistas precisaram do respaldo de oficiais e, mais tarde, do poderio militar da Grã-Bretanha. Os judeus e o mundo em geral não pareciam convencidos de que eles eram um povo sem terra. Shaftesbury, Finn, Balfour e Lloyd George gostavam dessa ideia porque ela ajudava a Grã-Bretanha a fincar o pé na Palestina. Isso se tornou irrelevante depois que os britânicos tomaram o território à força e, desde um novo ponto de partida, tiveram que decidir se aquelas terras eram judaicas ou palestinas — uma questão a qual jamais souberam responder de forma apropriada e, portanto, tiveram que deixar para outros resolverem após trinta anos de uma administração frustrante.
Mitos | > Próximo mito
Dez mitos sobre Israel, Ilan Pappé MOC
Shlomo Sand, A invengio do povo judeu, São Paulo: Benvira, 2011. ↩︎
Thomas Brightman, The Revelation of St. John Illustrated with an Analysis and Scholions [sic], 4th edn, Londres, 1644, p. 544. ↩︎
De uma carta que escreveu a Espinoza em 4 de dezembro de 1665, citada em Franz Kobler, The Vision Was There: The History of the British Movement for the Restoration of the Jews to Palestine, Londres: Birt Am Publications, 1956, pp. 25-6. ↩︎
Hagai Baruch, Le Sionisme Politique: Precurseurs et Militants: Le Prince De Linge, Paris: Beresnik, 1920, p. 20. ↩︎
Suja R. Sawafta, “Mapping the Middle East: From Bonaparte’s Egypt to Chateaubriand’s Palestine”, tese de doutorado apresentada na Universidade da Carolina do Norte, Chapel Hill, 2013. ↩︎
A. W. C. Crawford, Lord Lindsay, Letters on Egypt, Edom and the Holy Land, v. 2, Londres, 1847, p. 71. ↩︎
Citado em Anthony Julius, Trials of the Diaspora: A History of Anti-Semitism in England, Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 432. ↩︎
“Jews in America: President John Adams Embraces a Jewish Homeland” (1819), em jewishvirtuallibrary.org. ↩︎
Donald Lewis, The Origins of Christian Zionism: Lord Shaftesbury and Evangelical Support for a Jewish Homeland, Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 380. ↩︎
Anthony Ashley, “Earl of Shaftesbury”, anotacções do diário confome citadas por Edwin Hodder, The Life and Work of the Seventh Earl of Shaftesbury, Londres, 1886, v. 1, pp. 310-1; ver também Geoffrey B. A. M. Finlayson, The Seventh Earl of Shaftesbury, Londres: Eyre Methuen, 1981, p. 114; The National Register Archives, Londres, Shaftesbury (Broadlands) MSS, SHA/PD/2, 1° de agosto, 1840. ↩︎
Citado em Gertrude Himmelfarb, The People of the Book: Philosemitism in England, From Cromwell to Churchill, Nova York: Encounter Books, 2011, p. 119. ↩︎
The London Quarterly Review, v. 64, pp. 104-5. ↩︎
Ibid. ↩︎
Ibid. ↩︎
The Times of London, 17 de de agosto de 1840. ↩︎
Citado em Geoffrey Lewis, Balfour and Weizmann: The Zionist, The Zealot and the Emergence of Israel, Londres: Continuum books, 2009, p. 19. ↩︎
Deborah J. Schmidle, “Anthony Ashley-Cooper, Seventh Earl of Shaftsbury”, in: Hugh D. Hindman (ed.), The World of Child Labour: An Historical and Regional Survey, Londres e Nova York: M. E. Sharpe, 2009, p. 569. ↩︎
Desenvolvi essa ideia em Ilan Pappe, The Rise and Fall of a Palestinian Dynasty: The Husaynis, 1700-1948, Londres: Saqi Books, 2010, pp. 84, 117. ↩︎
Helmut Glenk, From Desert Sands to Golden Oranges: The History of the German Templers Settlement of Sarona in Palestine, Toronto: Trafford, 2005, é um dos poucos trabalhos em inglês. A maioria dos estudos sobre os templadores foi escrito em alemão ou hebraico. ↩︎
Alexander Schélch, Palestine in Transformation, 1856-1882: Studies in Social, Economic, and Political Development, Washington: Institute of Palestine Studies, 2006. ↩︎
Ilan Pappe, The Rise and Fall of a Palestinian Dynasty, op. cit. p. 115. ↩︎
O artigo escrito por Verte em 1970 foi republicado com o titulo “The Balfour Declaration and Its Makers”, in: N. Rose (ed.), From Palmerston to Balfour: Collected Essays of Mayer Verte, Londres: Frank Cass, 1992, pp. 1-38. ↩︎
J. M.N. Jeffries, Palestine: The Reality, Washington: Institute of Palestine Studies, 2013. ↩︎
O livro foi reimpresso como: Arthur Koestler, The Khazar Empire and its Heritage, Nova York: Random House, 1999. ↩︎
Keith Whitelam, in: The Invention of Ancient Israel, Londres e Nova York: Routledge, 1999, e Thomas L. Thompson, in: The Mythical Past: Biblical Archaeology and the Myth of Israel, Londres: Basic Books, 1999, criaram a Escola Copenhagem de minimalismo bíblico, que investiga os principais argumentos e pesquisas sobre o tema. ↩︎
Shlomo Sand, A inveng@io da Terra de Israel: da Terra Santa à Terra Pátria, São Paulo: Benvira, 2014. ↩︎