Israel é a única democracia do Oriente Médio


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Dez mitos sobre Israel

-- Ilan Pappe

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7 Israel é a única democracia do Oriente Médio

Aos olhos de muitos israelenses e de seus apoiadores ao redor do mundo — mesmo aqueles críticos a algumas de suas políticas —, Israel é, no final das contas, um Estado democrático benigno que busca a paz com seus vizinhos e garante igualdade a todos os seus cidadãos. Aqueles que criticam Israel entendem que, se algo deu errado nessa democracia, isso se deve a guerra de 1967. De acordo com essa visão, a guerra corrompeu uma sociedade honesta e trabalhadora ao oferecer dinheiro fácil nos territórios ocupados, permitindo que grupos messiânicos ingressassem na política israelense, e sobretudo ao transformar Israel em uma entidade invasora e opressiva nos novos territórios.

O mito de que um Israel democrático se viu em apuros em 1967, mas permaneceu uma democracia, é propagado até mesmo por alguns acadêmicos palestinos ou pré-Palestina de renome — mas não tem fundamento histórico. Não há dúvidas de que o Israel pré-1967 não poderia ser descrito como uma democracia. Como vimos nos capítulos anteriores, o Estado submeteu um quinto de seus cidadãos a um regime militar baseado em regulações draconianas de emergência oriundas do Mandato Britânico, negando aos palestinos quaisquer direitos humanos ou civis básicos. Governantes militares locais tinham absoluta soberania sobre a vida desses cidadãos: podiam elaborar leis especiais para eles, destruir suas casas e meios de subsistência e atira-los na cadeia a seu bel-prazer. Uma oposição sólida dos judeus contra esses abusos só surgiu no final dos anos 1950, e serviu para aliviar a pressão sobre os cidadãos palestinos.

Para os palestinos que viviam em Israel antes da guerra e aqueles que viveram na Cisjordânia e Faixa de Gaza após 1967, esse regime permitia que até os soldados de mais baixa patente das Forças de Defesa de Israel (FDI) governassem — e arruinassem — a vida deles. Ficavam impotentes caso um soldado, ou sua unidade ou comandante, decidisse demolir suas casas, detê-los por horas em um posto de controle, ou encarcerá-los sem julgamento. Não havia nada que pudessem fazer[1]. De 1948 até hoje, não houve nenhum momento em que algum palestino não estivesse passando por essa experiência. O primeiro grupo a sofrer sob esse jugo foi a minoria palestina dentro de Israel. Começou nos primeiros dois anos após a criação do Estado, quando foi empurrada para guetos — como a comunidade palestina de Haifa, no Monte Carmelo — ou expulsos da cidade onde viviam havia décadas — como Safad. No caso de Isdud, toda a população foi expulsa para a Faixa de Gaza[2]. No interior, a situação era ainda pior. Os vários movimentos de kibutzim cobiçavam vilarejos palestinos em terras férteis. Isso ocorreu inclusive com o kibutz socialista, Hashomer Hatzair, que declarava estar comprometido com a solidariedade binacional. Muito tempo após o apaziguamento das contendas de 1948, aldeões em Ghabsiyyeh, Iqrit, Birim, Qaidta, Zaytun e muitos outros foram ludibriados a deixarem sua casa por duas semanas, sob alegações de que o exército precisaria delas apenas para treinamento. Mais tarde, ao retornarem, descobriram que seu vilarejo havia sido destruído ou entregue a outras pessoas[3].

Esse estado de terror militar é bem exemplificado pelo massacre de Kafr Qasim em outubro de 1956, quando, as vésperas da operação no Sinai, 49 cidadãos palestinos foram assassinados pelo exército israelense. As autoridades alegaram que os mortos estariam atrasados ao retornarem para casa após o trabalho na lavoura — um toque de recolher havia sido imposto a todo o vilarejo. Essa, contudo, não foi a verdadeira razão. Provas posteriores mostram que Israel havia cogitado seriamente a expulsão dos palestinos de toda a área chamada Wadi Ara e do Triângulo no qual o vilarejo estava situado. Essas duas regiões — a primeira um vale conectando Afula, no leste, a Hadera, na costa do Mediterrâneo, e a segunda se estendendo pelas terras interioranas a leste de Jerusalém — foram anexadas a Israel sob os termos do acordo de armistício de 1949 com a Jordânia. Como vimos, Israel sempre recebeu bem a anexação de novos territórios, mas não o aumento de sua população palestina. Assim, em todas as suas expansões, o Estado de Israel sempre buscou formas de limitar a população palestina nas áreas que anexava.

A operação “Hafarfert” (toupeira) foi o codinome de um conjunto de propostas de expulsão dos palestinos quando uma nova guerra com o mundo árabe irrompeu. Muitos acadêmicos acreditam hoje que o massacre de 1956 foi um teste para ver se as pessoas da região seriam coagidas a sair. Os perpetradores do massacre foram levados a julgamento graças à diligência e tenacidade de dois membros do Knesset: Tawfiq Tubi, do Partido Comunista, e Latif Dori, do partido sionista de esquerda Mapam. No entanto, saiu barato para os comandantes responsáveis pela região e para a unidade que cometeu o crime, que só precisaram pagar pequenas multas[4]. Foi mais uma prova de que o exército estava autorizado a cometer assassinatos e se safar nos territórios ocupados.

A crueldade sistemática não mostra sua face apenas em grandes acontecimentos como um massacre. As piores atrocidades também podem ser constatadas na presença diária e cotidiana do regime. Os palestinos em Israel ainda não falam muito a respeito do período pré-1967, e os documentos da época não propiciam um retrato completo. Surpreendentemente, é na poesia que encontramos indícios de como era a vida sob um regime militar. Natan Alterman foi um dos poetas mais famosos e importantes de sua geração. Escrevia uma coluna semanal chamada “A Sétima Coluna”, na qual comentava os eventos sobre os quais tinha lido ou escutado. As vezes omitia detalhes sobre as datas, ou mesmo o local dos ocorridos, mas dava aos leitores um mínimo de informações para que entendessem a que se referia. Não raro, expressava seus ataques de forma poética:

As noticias apareceram brevemente por dois dias, e desapareceram.
E ninguém parece se importar, e ninguém parece saber.

No distante vilarejo de Um al-Fahem,

Crianças — ou devo dizer cidadãos do Estado — brincavam na lama
E uma delas pareceu suspeita a um de nossos bravos soldados que gritou: Pare!
Ordens são ordens

Ordens são ordens, mas o garoto tolo não se deteve,

Ele fugiu

Então nosso bravo soldado atirou, não admira

E acertou e matou o garoto.

E ninguém falou sobre isso[5].

Em dada ocasião, ele escreveu um poema sobre dois cidadãos palestinos mortos a tiros em Wadi Ara. Em outra, contou a história de uma mulher palestina muito doente que foi expulsa com seus dois filhos, de três e seis anos de idade, sem explicações, para o outro lado do Rio Jordão. Quando tentaram voltar, ela e seus filhos foram detidos e colocados em uma prisão em Nazaré. Alterman tinha esperanças de que seu poema sobre a mãe pudesse comover mentes e corações, ou ao menos incitar alguma resposta oficial. No entanto, ele escreveu uma semana depois:

E este escritor presumiu equivocadamente
Que a história seria ou desmentida, ou explicada
Mas nada, nem uma palavra[6].

Há outras evidências de que Israel não era uma democracia antes de 1967. O Estado adotou uma política de atirar para matar contra os refugiados que tentavam recuperar suas terras, plantações e animais, e montou uma guerra colonial para derrubar o regime de Nasser no Egito. Suas forças de segurança também gostavam de apertar o gatilho, e mataram mais de cinquenta cidadãos palestinos no período entre 1948 e 1967.

A prova decisiva para qualquer democracia é o nível de tolerância que ela oferece as suas minorias. Nesse aspecto, Israel fica muito longe de ser uma verdadeira democracia. Por exemplo, no período após as novas conquistas territoriais, o Estado aprovou diversas leis para assegurar uma posição de superioridade para as maiorias. Eram leis referentes à cidadania, à posse de terras e, mais importante, ao direito de retorno. Essa última garante cidadania automática a todos os judeus do mundo, seja qual for seu local de nascimento, e é explicitamente antidemocrática, pois se da em paralelo à negação do direito de retorno dos palestinos, reconhecido globalmente pela Resolução 194 da Assembleia Geral da ONU de 1948. Essa postura se recusa a permitir que os cidadãos palestinos de Israel se reunam com seus núcleos familiares ou compatriotas expulsos em 1948. Negar as pessoas o direito de retorno à sua pátria e, ao mesmo tempo, oferecer esse direito a pessoas sem nenhuma ligação com a terra é um modelo de prática antidemocrática.

Soma-se a isso uma outra camada de negação dos direitos do povo palestino. Quase todas as formas de discriminação contra os cidadãos palestinos de Israel são justificadas pelo fato de eles não servirem no exército[7]. Fica mais fácil de entender essa associação entre direitos democráticos e obrigações militares quando estudamos os anos de formação do Estado, quando os estrategistas políticos israelenses decidiam como tratariam um quinto da população. Sua hipótese era de que os cidadãos palestinos não desejariam se alistar no exército, e essa recusa presumida justificaria uma política discriminatória contra eles. Isso foi posto à prova em 1954, quando o Ministro da Defesa de Israel decidiu convocar os palestinos aptos a servirem no exército. O serviço secreto garantiu ao governo que haveria uma ampla rejeição ao chamado. Para sua grande surpresa, todos os intimados compareceram aos postos de recrutamento, com a bênção do Partido Comunista, a maior e mais importante força política da comunidade a época. Mais tarde o serviço secreto explicou que a principal razão seria o tédio dos adolescentes com a vida interiorana e seu anseio por um pouco de ação e aventura[8].

Não obstante o episódio, o Ministro da Defesa continuou espalhando a narrativa de que a comunidade palestina não estaria disposta a servir no exército. Como era inevitável, com o passar do tempo, os palestinos de fato se voltaram contra o exército israelense, que havia se tornado seu eterno opressor, mas o uso disso pelo governo como pretexto para a discriminação põe em dúvida a pretensão democrática do Estado. Se você é cidadão palestino e não serviu no exército, seu direito à assistência governamental enquanto trabalhador, estudante, pai, mãe ou parte de um casal sofre severas restrições. Isso afeta sobretudo o direito habitacional e a empregabilidade — 70 por cento da indústria israelense é considerada questão de segurança estratégica e, portanto, vetada a esses cidadãos como possibilidade de arranjar
trabalho[9].

Implicitamente, o Ministério da Defesa não presumia apenas que os palestinos não desejavam servir, mas também que eram inimigos internos em potencial e não confiáveis. O problema desse argumento é que, durante todas as principais guerras entre Israel e o mundo árabe, a minoria palestina não se comportou como esperado. Eles não formaram uma quinta coluna nem se levantaram contra o regime. Isso, contudo, não lhes serviu de nada: até hoje são vistos como um problema “demográfico” que precisa ser solucionado. O único consolo é que ainda hoje a maioria dos políticos israelenses não acredita que a maneira de solucionar “o problema” seja transferir ou expulsar os palestinos (ao menos não em tempos de paz).

A alegação de ser uma democracia também pode ser questionada quando se examina a política orçamentária referente à questão de terras. Desde 1948, os conselhos locais e municipalidades palestinos receberam muito menos recursos do que suas contra-partes judaicas. A escassez de terras, somada às poucas oportunidades de trabalho, criam uma realidade socioeconômica aberrante. Por exemplo, a comunidade palestina mais próspera, o vilarejo de Me'ilya na alta Galileia, ainda tem números piores do que Neguev, a mais pobre das cidades judaicas. Em 2011, o Jerusalem Post noticiou que “a renda média judaica foi de 40 a 60 por cento mais alta que a renda média árabe entre os anos de 1997 e 2009[10].

Hoje, mais de 90 por cento das terras pertencem ao Fundo Nacional Judaico. Proprietários de terra não têm permissão para negociar com cidadãos não judeus, e a terra pública tem uso prioritário para projetos nacionais, o que significa que novos assentamentos judeus estão sendo construídos enquanto não há praticamente nenhum novo assentamento palestino. Assim, embora Nazaré, a maior cidade palestina, tenha triplicado sua população desde 1948, seu território não aumentou nem um quilômetro quadrado, enquanto o desenvolvimento da cidade construída a norte dela, Nazaré Illit, triplicou de tamanho graças às terras expropriadas de seus antigos donos palestinos[11].

Outros exemplos dessa política são os vilarejos palestinos espalhados pela Galileia. Eles contam a mesma história: desde 1948, tiveram seu território reduzido em 40 por cento (em alguns casos, até 60 por cento), e novos assentamentos judeus foram construídos nas terras expropriadas. Em outros lugares, essa política levou a uma tentativa irrestrita de “judeificação”. A partir de 1967, o governo israelense passou a se preocupar com a escassez de judeus vivendo nos extremos norte e sul do Estado, e fez planos para aumentar a população nessas áreas. Essa mudança demográfica requereu o confisco de terras palestinas para a construção de assentamentos judeus.

Ainda pior é a exclusão dos cidadãos palestinos desses assentamentos. A franca violação do direito do cidadão a viver onde quiser ainda persiste e, até agora, todos os esforços das ONGs de direitos humanos que atuam em Israel de desafiar esse apartheid foram um completo fracasso. A Suprema Corte de Israel questionou a legalidade dessa política apenas em alguns poucos casos pontuais, mas jamais enquanto princípio. Imagine se no Reino Unido ou nos Estados Unidos os cidadãos judeus — ou católicos, suponhamos — fossem impedidos por lei de morar em certos bairros, vilarejos, ou mesmo cidades inteiras. Como uma coisa dessas seria compatível com a noção de democracia?

Portanto, dada a atitude em relação a dois grupos palestinos — os refugiados e a comunidade em Israel —, não há manobra argumentativa capaz de retratar o Estado judeu como uma democracia. A prova em contrário mais evidente é o tratamento cruel que Israel dispensa a um terceiro grupo de palestinos: aqueles que, desde 1967, vivem sob sua égide, direta ou indiretamente, em Jerusalém Oriental, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Do sistema legal instaurado após a guerra, passando pela presença militar absoluta e inquestionável na Cisjordânia e ao redor da Faixa de Gaza, até a humilhação diária de milhões de palestinos, a “única democracia” do Oriente Médio se comporta como uma ditadura do pior tipo.

Para se defender dessa acusação, a principal resposta diplomática e acadêmica de Israel é alegar que todas as medidas citadas sido temporárias — elas mudarão se os palestinos se comportarem “melhor” em qualquer um desses locais. Mas ao se pesquisar — e nem falemos de habitar — os territórios ocupados, compreende-se quão ridículo é esse argumento. Como vimos, os estrategistas políticos israelenses estão determinados a manter a ocupação ativa enquanto o Estado judaico permanecer intacto. Já faz parte do status quo israelense, e seus políticos preferem isso a qualquer mudança. Israel controlará a maior parte da Palestina e, como sempre haverá nela uma população palestina considerável, a única forma de fazer isso é por vias não democráticas.

Além disso, apesar de todas as evidências em contrário, o Estado israelense alega que essa ocupação é uma “ocupação iluminada”. O mito aqui é de que Israel chegou com boas intenções de ministrar uma ocupação benevolente, mas se viu forçado a tomar atitudes drásticas por causa da violência palestina. Em 1967, o governo tratou a Cisjordânia e a Faixa de Gaza como partes naturais de “Eretz Israel”, a Terra de Israel, e essa atitude persiste desde então. Um exame dos debates entre partidos israelenses de esquerda e de direita revela que eles nunca discordaram quanto à validade desse objetivo, mas apenas à melhor maneira de alcançá-lo.

No público em geral, porém, houve um debate genuino entre o que poderiamos chamar de “redentores” e “custodiantes”. Os “redentores” acreditavam que Israel havia recuperado o antigo núcleo de sua pátria e não poderia mais sobreviver sem ele. Por sua vez, os “custodiantes” argumentavam que os territórios deveriam ser trocados pela paz com a Jordânia (no caso da Cisjordânia) e o Egito (no caso da Faixa de Gaza)[12]. Entretanto, esse debate público pouco impactou a forma como os principais estrategistas políticos de Israel buscaram administrar os territórios ocupados. Os métodos adotados pelo governo para administrar os territórios são a pior parte dessa “ocupação iluminada”. De inicio, a área havia sido dividida entre espaços “árabes” e potencialmente “judeus”. As regiões com densa população palestina se tornaram autônomas, geridas por colaboradores locais sob um regime militar. O regime só foi substituído por uma administração civil em 1981. As outras áreas, os espaços “judeus”, foram colonizadas com assentamentos e bases militares judeus. O objetivo dessa política era confinar as populações da Cisjordânia e da Faixa de Gaza em enclaves isolados, sem espaços verdes ou qualquer possibilidade de expansão urbana.

As coisas só pioraram quando, muito pouco tempo após a ocupação, o Gush Emunim inaugurou assentamentos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, alegando seguir um mapa bíblico de colonização, e não um mapa governamental. Conforme o grupo adentrou áreas de densa população palestina, o espaço que restava para os locais encolheu ainda mais.

A necessidade primordial de todo projeto colonial é a terra — e, nos territórios ocupados, ela só podia ser obtida por meio de expropriações massivas, deportação de pessoas dos locais onde viviam por gerações e do confinamento dos habitantes remanescentes em enclaves de ambiente inóspito. Ao sobrevoar a Cisjordânia, vê-se claramente os resultados cartográficos dessa política: cinturões de assentamentos repartindo a terra e entrincheirando as comunidades palestinas em pequenas comunidades isoladas e desconectadas. Os cinturões de judeificação separam vilarejos de vilarejos, vilarejos de cidades, e, às vezes, dividem uma única vila em duas. É o que os acadêmicos chamam de desastre geográfico, sobretudo porque essas políticas se revelaram também um desastre ecológico, secando as fontes de água e arruinando algumas das mais belas paisagens palestinas. Além disso, os assentamentos se tornaram antros onde o extremismo judeu cresceu de modo incontrolável — e os palestinos foram suas principais vítimas. Desse modo, o assentamento em Efrat arruinou o sítio de Patrimônio da Humanidade no vale de Wallajah, próximo a Bethlehem; e a vila de Jafneh perto de Ramallah, antes famosa por seus canais de água fresca, perdeu seu caráter de atração turística. Esses são apenas dois pequenos exemplos dentre centenas de casos semelhantes.

A demolição de casas não é um fenômeno novo na Palestina. Como ocorre com a maioria dos métodos mais bárbaros de punição coletiva usados por Israel desde 1948, este foi concebido e posto em prática pela primeira vez pelo governo do Mandato Britânico durante a Grande Revolta Árabe de 1936 a 1939. Foi o primeiro levante palestino contra a política pro-sionista do Mandato Britânico, e o exército britânico levou três anos para debelá-lo. No processo, demoliu cerca de 2 mil casas durante as varias punições coletivas impostas à população local[13]. Israel demoliu casas praticamente desde o primeiro dia de sua ocupação militar na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. O exército explodiu centenas de casas a cada ano em resposta a diversos atos perpetrados individualmente por membros das famílias[14]. Fosse em reação a violações leves do regulamento militar ou à participação em atos violentos contra a ocupação, os israelenses não demoravam a enviar seus tratores. Assim, devastavam não só as construções, mas também um núcleo de vida e existência. Na área da Jerusalém expandida (e dentro de Israel) as demolições também eram usadas como punição para a ampliação não autorizada de casas ou o atraso no pagamento de contas.

Outra forma de punição coletiva reincorporada em tempos recentes ao repertório israelense é o bloqueio de casas. Imagine todas as portas e janelas da sua casa bloqueadas com cimento, pedras e argamassa, de modo que você não possa mais entrar nela para buscar aquilo que não retirou enquanto era tempo. Procurei muito em meus livros de história por outros exemplos disso, mas não encontrei indícios de que essa medida impiedosa tenha sido praticada em algum outro lugar.

Por fim, sob a “ocupação iluminada”, os colonos foram autorizados a formar gangues de vigilantes, intimidar pessoas e destruir suas propriedades. A abordagem dessas gangues mudou ao longo dos anos. Durante os anos 1980, executaram ações de puro terrorismo — desde ferir lideres palestinos (um deles perdeu as pernas em um desses ataques) até planos para explodir as mesquitas de Haram al-Sharif em Jerusalém. Neste século, elas têm se dedicado ao assédio diário aos palestinos, arrancando suas árvores, destruindo seus cultivos e disparando aleatoriamente contra seus veículos e casas. Desde 2000, ao menos cem ataques desses foram registrados por mês em áreas como Hebron, onde 500 colonos, com a colaboração silenciosa do exército israelense, assediam os moradores locais de maneira ainda mais brutal[15].

Desde o inicio da ocupação, portanto, os palestinos se viram diante de duas opções: aceitar o encarceramento permanente em uma mega-prisão por um período muito longo, ou correr o risco de sofrer nas mãos do exército mais forte do Oriente Médio. Quando os palestinos resistiram — como fizeram em 1987, 2000, 2006, 2012, 2014 e 2016 —, foram alvejados como se fossem soldados ou unidades militares convencionais. Cidades e vilarejos foram bombardeados como se fossem bases militares, e a população civil desarmada foi alvo de tiros como se fosse um exército em campo de batalha. Hoje sabemos muito sobre a vida sob ocupação, antes e depois de Oslo, para levarmos a sério a afirmação de que o fim da resistência reduziria a opressão. As prisões sem julgamento de que tantos foram vítimas ao longo dos anos, a demolição de milhares de casas, o assassinato e ferimento de inocentes, a drenagem de poços... todas essas ações são testemunhos de um dos regimes mais cruéis de nossos tempos. Todos os anos, a Anistia Internacional documenta de forma muito detalhada a natureza dessa ocupação. O trecho seguinte é do relatório de 2015:

Na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, forças israelenses cometeram execuções ilegais de civis palestinos, inclusive de crianças, e detiveram milhares de palestinos que protestavam ou se opunham de alguma forma à continua ocupação militar israelense, mantendo centenas deles sob detenção administrativa. Tortura e outros maus-tratos foram práticas corriqueiras cometidas com impunidade. As autoridades continuaram a estimular assentamentos ilegais na Cisjordânia e restringiram severamente a liberdade de movimento dos palestinos, impondo ainda mais restrições em meio à escalada de violência de outubro, que incluiu ataques de palestinos a civis israelenses e, ao que tudo indica, execuções extrajudiciais pelas forças israelenses. Colonos israelenses na Cisjordânia atacaram palestinos e suas propriedades de forma praticamente impune. A Faixa de Gaza permaneceu sob bloqueio militar dos israelenses, que impuseram punições coletivas aos moradores. As autoridades continuaram demolindo casas palestinas na Cisjordânia e dentro de Israel, sobretudo em vilarejos de beduínos na região do Neguev/Naqab, expulsando seus residentes à força[16].

Vamos por partes. Em primeiro lugar, os assassinatos, o que o relatório da Anistia chama de “execuções ilegais”: cerca de 15 mil palestinos foram mortos “ilegalmente” por Israel desde 1967. Entre eles havia 2 mil crianças[17]. Outra característica da “ocupação iluminada” é a prisão sem julgamento. Um quinto de todos os palestinos na Cisjordânia ou na Faixa de Gaza já passou por essa experiência[18]. E interessante comparar essa prática israelense às políticas estadunidenses similares do passado e do presente, pois críticos do movimento “Boicote, Desinvestimento e Sanções” (BDS) alegam que as práticas dos EUA são bem piores. De fato, o pior exemplo estadunidense foi a prisão sem julgamento de 100 mil cidadãos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, e a detenção de outras 30 mil pessoas na assim chamada “guerra ao terror”. Nenhum desses números chega nem perto do número de palestinos que passaram por esse processo: incluindo os muito jovens, os velhos e também os encarcerados a longo prazo[19]. A prisão sem julgamento é uma experiência traumática. Não saber do que se é acusado, ser impedido de falar com um advogado e não ter quase nenhum contato com a família são apenas algumas das preocupações que acometem os prisioneiros. Ainda mais brutal é o fato de que muitas dessas prisões são usadas como meio de pressionar as pessoas a colaborar. Espalhar rumores ou caluniar pessoas por supostas ou reais orientações sexuais também são métodos usados com frequência para incentivar a cumplicidade.

Quanto à tortura, o confiável site Middle East Monitor publicou um angustiante artigo descrevendo os 200 métodos usados pelos israelenses para torturar palestinos. A lista se baseia em um relatório da ONU e em um relatório da organização de direitos humanos israelense B’Iselem[20]. Espancamentos, acorrentamento de prisioneiros a portas e cadeiras durante horas, derrame de água fria e quente sobre seus corpos, distensão de dedos e torção dos testículos são alguns dos métodos utilizados.

Portanto, o que devemos questionar aqui não é apenas a alegação de Israel de que mantém uma “ocupação iluminada”, mas também sua pretensão de ser uma democracia. Seu comportamento perante milhões de pessoas sob seu governo evidencia a falsidade dessa chicana política. No entanto, embora amplos setores da sociedade civil ao redor do mundo neguem a pretensão de Israel de ser uma democracia, suas elites políticas, por diversas razões, ainda tratam o Estado como membro do restrito grupo de nações democráticas. A popularidade do movimento BDS reflete de muitas maneiras as frustrações dessas sociedades com as políticas de seus governos em relação a Israel.

Para a maioria dos israelenses, esses contra-argumentos são, na melhor das hipóteses, irrelevantes e, na pior, maldosos. O Estado israelense se agarra à ideia de ser um ocupante benevolente. O argumento em prol da “ocupação iluminada”, típico do cidadão judeu médio de Israel, diz que os palestinos vivem muito melhor sob ocupação e não têm nenhum motivo no mundo para resistir, muito menos com o uso da força. Se você é um apoiador acrítico de Israel no exterior, também é conivente com essas alegações.

Existem, contudo, setores da sociedade israelense que reconhecem a validade de alguns dos argumentos levantados aqui. Nos anos 1990, com vários graus de convicção, um número significativo de acadêmicos, jornalistas e artistas judeus manifestou dúvidas quanto a Israel poder ser chamado de democracia. E preciso coragem para questionar os mitos fundadores de seu próprio Estado e sociedade. E por isso que, mais tarde, um bom número deles voltou atrás e se realinhou com a opinião geral. No entanto, durante parte da última década do século passado, as obras produzidas por essas pessoas desafiaram a ideia de um Israel democrático. Elas retrataram Israel como um Estado pertencente a outro grupo: o das nações não
democráticas. Um desses indivíduos, o geógrafo Oren Yiftachel, da Universidade Ben-Gurion, descreveu Israel como uma etnocracia, um regime que governa um Estado multiétnico dando preferência legal e formal a um grupo étnico em detrimento dos outros[21]. Alguns foram mais longe, classificando o regime israelense como um apartheid ou Estado colonialista de povoamento[22]. Em resumo, esses acadêmicos críticos ofereceram um rol de categorias que não incluía “democracia”.


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  1. Uma descrição detalhada dessa vida pode ser encontrada em Ilan Pappe, The Forgotten Palestinians: A History of the Palestinians in Israel, New Haven e Londres: Yale University Press, 2013, pp. 46-93. ↩︎

  2. Benny Morris, The Birth of the Palestinian Refugee Problem Revisited, op. cit. p. 471. ↩︎

  3. Ver Ilan Pappe, A limpeza étnica da Palestina. ↩︎

  4. Shira Robinson, “Local Struggle, National Struggle: Palestinian Responses to the Kafr Qasim Massacre and its Aftermath, 1956-66”, International Journal of Middle East Studies, 35, 2003, pp. 393-416. ↩︎

  5. Natan Alterman, “A Matter of No Importance”, Davar, 7 de setembro de 1951. ↩︎

  6. Id. “Two Security Measures”, The Seventh Column, v. 1, p. 291 (em hebráico). ↩︎

  7. Listei-as em The Forgotten Palestinians. ↩︎

  8. Ver Ilan Pappe, The Forgotten Palestinians, op. cit. p. 65. ↩︎

  9. Ver reportagem de Adalah, “An Anti-Human Rights Year for the Israeli Supreme Court”, 10 de dezembro de 2015, em adalah.org. ↩︎

  10. The Jerusalem Post, 24 de novembro de 2011. ↩︎

  11. Ver Ilan Pappe, “In Upper Nazareth: Judaisation”, London Review of Books, 10 de setembro de 2009. ↩︎

  12. Ver Amnon Sella, “Custodians and Redeemers: Israel’s Leaders’ Perceptions of Peace, 1967-1979”, Middle East Studies, 22:2, 1986, pp. 236-51. ↩︎

  13. Motti Golani, Palestine Between Politics and Terror, 1945-1947, Brandeis: Brandeis University Press, 2013, p. 201. ↩︎

  14. Descrições com os horrendos detalhes de quase todas as demolições desse tipo podem ser encontradas no site do Comitê Israelense Contra Demolição de Casas, disponível em: <icalid.org>. ↩︎

  15. Ver relatório da ONG israelense Yesh Din, “Law Enforcement on Israeli Civilians in the West Bank’, disponível em: <yesh-din.org>. ↩︎

  16. Ver “Israel and Occupied Palestinian Territories”, disponível em: <amnesty.org>. ↩︎

  17. A contagem de mortos é mais precisa a partir de 1987, mas há fontes confiáveis para o período como um todo. Ver relatórios de mortos do B’Tselem e visitar sua página de estatísticas disponível em: <isclem.org>. Outras fontes incluem os relatórios do IMEMC e do Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitarios (OCHA, na sigla em inglês), da ONU. ↩︎

  18. Um dos relatórios mais completos quanto ao número de prisioneiros pode ser encontrado em Mohammad Ma’ri, “Israeli Forces Arrested 800,000 Palestinians since 1967”, The Saudi Gazette, 12 de dezembro de 2012. ↩︎

  19. Ver o documento em Harry Truman Library, “The War Relocation Authority and the Incarceration of the Japanese-Americans in the Second World War”, disponível em: <truman|ibrary.org>. ↩︎

  20. Ver “Torture in Israeli Prisons”, 29 de outubro de 2014, disponível em: <middleeastmonitor.com>. ↩︎

  21. Oren Yiftachel e As’ad Ghanem, “Towards a Theory of Ethnocratic Regimes: Learning from the Judaisation of Israel/Palestine”, in: E. Kaufman (ed.), Rethinking Ethnicity, Majority Groups and Dominant Minorities, Londres e Nova York: Routledge, 2004, pp. 179-97. ↩︎

  22. Ver Uri Davis, Apartheid Israel: Possibilities for the Struggle from Within, Londres: Zed Books, 2004. ↩︎