Dawkins e o Islã
Reproduzo abaixo um tweet que me surpreendeu negativamente ao expor uma entrevista do Dawkins. Mais adiante coloco uma tradução que fiz além de alguns comentários.
This is quite something: Richard Dawkins, undoubtedly the world's leading atheist, the author of The God Delusion, comes out as "cultural Christian" and calls for the UK to promote Christianity as opposed to Islam, which he calls "not a decent religion". https://twitter.com/LBC/status/1774510715975368778/video/1
He can thank god (pun intended) that irony isn't fatal...
Beyond his words, I think this is something of a sign of a broader trend in the West: its renunciation of universalism and its retreat to a new form of conservatism.
It's quite logical. When the West was expanding - culturally speaking - it had to adapt its culture in ways palatable to all. Dawkins's form of atheism was perfect for this: atheism per-se is universalist because anyone from any religion can doubt that god exists and become a non-believer. And it was in fact very impactful: over the past few decades atheism was undoubtedly one the fastest growing "religions" in the world.
But what Dawkins now clarifies in a surprisingly frank way was that his brand of atheism wasn't truly universalist or even truly atheist, it came from a man who obviously believes in the superiority of Christianism (and probably British Protestantism) and its value-set.
This remained unstated because, obviously, it would have been a huge turn-off to say it whilst the West had pretentions to dominate the world culturally. The fact he now doesn't hesitate to express it is both a sign that 1) these pretentions are over in the minds of Western cultural elites like him and 2) they feel so threatened by an inverse movement - that their own culture be at risk - that they now openly say "wait a minute, we have non-universal values and beliefs, we have a singular identity based on Christianity, and we want to preserve this".
Which would be fine - nothing wrong with wanting to preserve one's identity - if Dawkins didn't pair that with an obvious form of Islamophobia, and probably broader xenophobia. Which is quite rich coming from the UK: they colonized the immense majority of the world's Muslim population, resulting in Muslims from all over the world coming to live in Britain and now that they're weak they're like "scratch that, this 'happy-merry let's all be one big family' was just pretense, we don't want that anymore, we actually really don't want to accommodate other cultures in our midst, we actually hate you guys"... A bit late for that I'm afraid.
It reminds me of the story of China's Qing dynasty. Originally a Manchu dynasty that conquered the whole of China, they had to change their culture so much in order to govern the much-more-numerous Han Chinese that Manchus as a separate identity virtually disappeared. A lesson that in geopolitics when you have your eyes bigger than your belly, you might end up "winning" but in reality you actually lose. And conversely, you can also win by "losing".
]-- Link para o Tweet
Tradução:
Isso é algo extraordinário: Richard Dawkins, sem dúvida o maior ateu do mundo, autor de The God Delusion (A ilusão de Deus), se apresenta como "cristão cultural" e pede que o Reino Unido promova o cristianismo em oposição ao Islã, que ele chama de "não é uma religião decente". https://twitter.com/LBC/status/1774510715975368778/video/1
Ele pode agradecer a Deus (trocadilho intencional) pelo fato de a ironia não ser fatal...
Além de suas palavras, acho que isso é um sinal de uma tendência mais ampla no Ocidente: sua renúncia ao universalismo e seu recuo para uma nova forma de conservadorismo.
Isso é bastante lógico. Quando o Ocidente estava se expandindo - culturalmente falando - ele teve que adaptar sua cultura de forma palatável para todos. A forma de ateísmo de Dawkins era perfeita para isso: o ateísmo em si é universalista porque qualquer pessoa de qualquer religião pode duvidar da existência de Deus e se tornar um descrente. E foi de fato muito impactante: nas últimas décadas, o ateísmo foi, sem dúvida, uma das "religiões" que mais cresceram no mundo.
Mas o que Dawkins esclarece agora, de forma surpreendentemente franca, é que seu tipo de ateísmo não era verdadeiramente universalista ou mesmo verdadeiramente ateu, ele vinha de um homem que obviamente acredita na superioridade do cristianismo (e provavelmente do protestantismo britânico) e em seu conjunto de valores.
Isso não foi declarado porque, obviamente, teria sido muito desagradável dizer isso enquanto o Ocidente tinha a pretensão de dominar o mundo culturalmente. O fato de ele agora não hesitar em expressar isso é um sinal de que 1) essas pretensões acabaram na mente das elites culturais ocidentais como ele e 2) elas se sentem tão ameaçadas por um movimento inverso - que sua própria cultura esteja em risco - que agora dizem abertamente "espere um pouco, temos valores e crenças não universais, temos uma identidade singular baseada no cristianismo e queremos preservar isso".
O que seria ótimo - não há nada de errado em querer preservar a própria identidade - se Dawkins não combinasse isso com uma forma óbvia de islamofobia e, provavelmente, com uma xenofobia mais ampla. O que é bastante rico vindo do Reino Unido: eles colonizaram a imensa maioria da população muçulmana do mundo, o que resultou na vinda de muçulmanos de todo o mundo para viver na Grã-Bretanha e, agora que estão fracos, eles dizem: " Esqueça isso, este "felizes e alegres, vamos todos ser uma grande família" era apenas fingimento, não queremos mais isso, na verdade não queremos acomodar outras culturas em nosso meio, na verdade odiamos vocês"... Receio que seja um pouco tarde para isso.
Isso me lembra a história da dinastia Qing da China. Originalmente uma dinastia manchu que conquistou toda a China, eles tiveram que mudar tanto sua cultura para governar os chineses han, muito mais numerosos, que os manchus como uma identidade separada praticamente desapareceram. Uma lição de que, na geopolítica, quando você tem os olhos maiores do que a barriga, pode acabar "ganhando", mas, na realidade, acaba perdendo. E, ao contrário, você também pode ganhar "perdendo".
Dawkins delusion? Há uma piada citada por Dawkins sobre um "ateu" num posto de fronteira entre as Irlandas (Acho que foi no " O capelão do Diabo"). Era algo assim:
- Alto lá. Católico ou protestante?
- Ateu.
- Ateu católico ou protestante?
Essa piada remete ao fundamentalismo religioso nos conflitos na Irlanda onde até um ateu seria encurralado sem poder ficar encima do muro. Mas diante da surpreendente entrevista acima citada já mostra, eu acho, que Dawkins já era um "cristão cultural". Mas se posicionar assim em relação ao Islã foi esquisito.
Li muitos livros do Dawkins e gosto especialmente do "A escalada do monte improvável". Os trechos sobre a teia de aranha como parte da aranha e a simulação da evolução no computador jogando moscas na teia por gerações é muito interessante. Ver a teia evoluir para a forma que há na natureza é bastante ilustrativo. E no final temos "O jardim murado", uma intrincada descrição da ecologia num microcosmo chamado "figo". Vespas estéreis ou não e uma miríade de insetos compõem uma sinfonia explicando, com base na evolução, que o que era para ser um ataque bem sucedido do criacionismo com "E o figo?" era na verdade um fracasso do mesmo. E também há o "olho", surgido no mar de várias maneiras e ainda lá testemunhando a evolução e contrariando a dificuldade que derrotou até um meticuloso Darwin.
Li também o "God delusion" do Dawkins, em português: "Deus, uma ilusão", e, também um razoável leitor de Nietzsche, pendi para a opinião de que o ateísmo de Dawkins era muito feito de ressentimento e niilismo passivo (Deleuze em "Nietzsche"). A abordagem "filológica" e de "suspeitoso" do Nietzsche me sabe melhor. Nietzsche costumava suspeitar de alguns ateus que pareciam ser muito religiosos ou demasiados cristãos. E Volpi, no seu "Niilismo", diz algo como "os altares vazios após a morte de Deus ou dos deuses se povoam de demônios". Não a toa o ateísmo importante que há em Israel não é capaz de mover a sociedade de forma mais contundente contra o genocídio em Gaza.