As mitologias de Oslo


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Dez mitos sobre Israel

-- Ilan Pappe


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8 As mitologias de Oslo

Em 13 de setembro de 1993, Israel e OLP assinaram uma declaração de princípios, conhecida como Acordo de Oslo, no gramado da Casa Branca sob os auspícios do presidente Bill Clinton. O líder da OLP, Yasser Arafat, o primeiro-ministro israelense, Yitzhak Rabin, e o Ministro das Relações Exteriores de Israel, Shimon Peres, receberiam mais tarde o Prêmio Nobel da Paz por esse acordo. Ele pôs fim a um longo período de negociações iniciadas em 1992. Até aquele ano, Israel havia se recusado a negociar diretamente com a OLP o destino da Cisjordânia e da Faixa de Gaza ou a questão palestina em geral. Sucessivos governos israelenses preferiram negociar com a Jordânia, mas, desde meados dos anos 1980, permitiu-se que representantes da OLP integrassem as delegações jordanianas.

Houve muitas razões para os israelenses mudarem de postura e permitirem negociações diretas com a OLP. A primeira foi a vitória do Partido Trabalhista nas eleições de 1992 (pela primeira vez desde 1977) e a formação de um governo mais interessado em uma solução política do que as gestões prévias, encabeçadas pelo Likud. O novo governo entendia que as tentativas de negociar a autonomia palestina diretamente com as suas lideranças locais estavam emperradas porque todas as decisões palestinas eram levadas à sede da OLP em Tunis; assim, uma linha direta seria mais produtiva.

A segunda razão diz respeito à apreensão dos israelenses por causa da iniciativa de paz de Madri — tentativa estadunidense de reunir Israel, palestinos e o resto do mundo Árabe para chegar a um acordo após a Primeira Guerra do Golfo. O presidente George Bush pai e seu secretario de Estado, William Baker, tutelaram essa iniciativa em 1991. Os dois políticos afirmaram que Israel era um obstáculo para a paz e pressionaram o governo israelense a interromper a instalação de assentamentos e dar uma chance à solução de dois Estados. A nova administração israelense também estabeleceu contato direto com a própria OLP. É provável que a conferência de Madri de 1991 e os esforços de paz conduzidos sob seu auspício tenham sido o primeiro esforço genuíno dos EUA para encontrar uma solução para a Cisjordânia e a Faixa de Gaza tendo como base a retirada israelense. A elite política israelense queria frustrar o movimento arrancando-o pela raiz. Ela preferia dar início à sua própria oferta de paz e convencer os palestinos a aceita-la. Yasser Arafat também estava descontente com a iniciativa de Madri, pois ao seu ver as lideranças palestinas locais dos territórios ocupados, chefiadas pelo líder gazense, Haidar Abdel-Shafi, e Faysal al-Husseini, de Jerusalém, ameaçavam sua liderança e sua popularidade ao assumirem a dianteira nas negociações.

Assim a OLP em Túnis e 0 Ministério das Relações Exteriores israelense em Jerusalém começaram a negociar nos bastidores enquanto o esforço de paz de Madri prosseguia. Eles encontraram um mediador bastante empenhado na Fafo — instituto de paz norueguês com sede em Oslo. As duas equipes acabaram se encontrando em público em agosto de 1993 e, com os envolvidos estadunidenses, concluíram a Declaração de Princípios (DOP, na sigla em inglês). No ato da assinatura, a DOP foi celebrada como o fim do conflito, e houve grande estardalhaço no gramado da Casa Branca em 1993.

HÁ dois mitos envolvendo o processo de Oslo. O primeiro é de que se tratava de um processo de paz genuíno; o segundo é de que Yasser Arafat o teria sabotado intencionalmente instigando a Segunda Intifada como uma operação terrorista contra Israel.

O primeiro mito nasceu do desejo de ambos os lados em 1992 de encontrar uma solução. No entanto, quando isso fracassou, logo se tornou uma disputa de quem devia ser culpado. Os israelenses linha-dura apontaram o dedo para as lideranças palestinas. Já uma visão sionista liberal de maiores nuances culpava Yasser Arafat, mas também a direita israelense (em particular Benjamin Netanyahu) pelo impasse após a morte do líder da OLP em 2004. Nos dois cenários, o processo de paz é considerado real, apesar de seu fracasso. No entanto, a verdade é mais complexa. Os termos do acordo eram irrealizáveis. A alegação de que Arafat se recusou a respeitar os compromissos feitos pelos palestinos no Acordo de 1993 não sobrevive a uma análise cuidadosa. Ele não tinha como cumprir compromissos inatingíveis. Por exemplo, as autoridades palestinas foram convocadas a agir como sub-contratantes de segurança de Israel dentro dos territórios ocupados e garantir que não haveria ações de resistência. De maneira implícita, esperava-se que Arafat aceitasse sem questionar a interpretação israelense do arranjo final presente no Acordo. Os israelenses apresentaram esse fato consumado ao líder da OLP no verão de 2000 na cúpula de Camp David, onde o líder palestino estava negociando o acordo final com o primeiro-ministro israelense, Ehud Barak, e o presidente dos EUA, Bill Clinton.

Barak exigiu um Estado palestino desmilitarizado, com capital em uma localidade próxima a Jerusalém, Abu Dis, e sem partes da Cisjordânia como o Vale do Jordão, os grandes blocos de assentamentos judeus e certas áreas da Grande Jerusalém. O Estado futuro não teria políticas econômica e exterior independentes, e só teria autonomia em alguns aspectos domésticos (como a gestão do sistema educacional, a cobrança de impostos, a municipalidade, o policiamento e a manutenção da infraestrutura). A formalização desse combinado significaria o fim do conflito e encerraria qualquer futura demanda palestina (como o direito de retorno para os refugiados palestinos de 1948).

O processo de paz já estava fadado ao fracasso desde o início. Para entender por que Oslo deu errado, devemos ampliar nossa análise e pensar os eventos a partir de dois princípios que permaneceram sem resposta ao longo do Acordo. O primeiro foi a primazia da partilha geográfica ou territorial como único alicerce da paz; o segundo foi a negação do direito de retorno dos refugiados palestinos e sua exclusão das mesas de negociação.

A ideia de que a divisão física da terra seria a melhor solução para o conflito surgiu pela primeira vez em 1937 por obra da Comissão Real Britânica, o relatório Peel. Naquela época o movimento sionista sugeria que a Jordânia — então Transjordânia — anexasse as “partes árabes da Palestina”, mas a ideia foi rejeitada pelos palestinos[1]. Mais tarde isso foi apontado outra vez como o melhor curso de ação na Resolução de Partição da ONU de novembro de 1947. A ONU nomeou um comitê de inquérito, o Comitê Especial das Nações Unidas sobre a Palestina (UNSCOP, na sigla em inglês), para tentar achar uma solução. Os membros do comitê vinham de países com muito pouco interesse ou informação sobre a situação palestina. O corpo representativo palestino, o Alto Comitê Árabe e a Liga Árabe boicotaram o UNSCOP e se recusaram a cooperar com ele. Isso deixou um vácuo que foi preenchido pelos diplomatas e lideranças sionistas, que alimentaram o UNSCOP com suas ideias para uma solução. Eles sugeriram a criação de um Estado judeu para governar 80 por cento da palestina; o comitê reduziu-o para 56 por cento[2]. Egito e Jordânia estavam dispostos a legitimar a tomada da Palestina pelos israelenses em 1948 em troca de acordos bilaterais (que acabaram sendo firmados em 1979, no caso do Egito, e em 1994, no caso da Jordânia).

A ideia da divisão ressurgiu com novos nomes e referências durante os esforços de paz conduzidos pelos estadunidenses após 1967. Ela estava implícita em um novo discurso emergente: o dos “territórios para a paz”, que todo negociador tratava como uma fórmula sagrada — quanto maior o território do qual Israel se retirasse, mais paz o Estado obteria. Agora o território do qual Israel poderia se retirar fazia parte dos 20 por cento que ainda não havia tomado em 1948. Assim, a ideia básica era estabelecer a paz dividindo os 20 por cento remanescentes entre Israel e quem o Estado judeu legitimasse como um parceiro para a paz (os jordanianos, até o final dos anos 1980, e os palestinos desde então).

Não é de surpreender, portanto, que isso tenha se tornado a base lógica que guiou o início das negociações em Oslo. Foi fácil esquecer, contudo, que historicamente todas as propostas de divisão foram sucedidas por mais derramamento de sangue, e todas falharam em gerar a paz desejada. Na verdade, em nenhum momento os lideres palestinos exigiram uma divisão. Essa sempre foi uma ideia sionista e, mais tarde, israelense. Além disso, a porção de território reivindicada pelos israelenses crescia à medida que seu poder aumentava. Assim, conforme a ideia de partido angariava crescente apoio internacional, aos olhos palestinos ela parecia cada vez mais uma nova estratégia ofensiva. Por falta de alternativa, os partidos palestinos acabaram aceitando esse conjunto de circunstâncias como um mal menor dentro dos termos de negociação. No início dos anos 1970, o Fatah reconheceu a partição como etapa necessária no caminho para a libertação plena, mas não como acordo final por si só[3].

Na verdade, sem a aplicação de uma pressão extrema, não há no mundo uma razão para que uma população autóctone divida voluntariamente sua terra com uma população de colonos. E por isso devemos reconhecer que o processo de Oslo não foi uma busca justa e igualitária pela paz, mas um compromisso aceito por um povo colonizado e derrotado. Como resultado, os palestinos foram forçados a buscar soluções que iam contra os seus interesses e colocavam sua própria existência em risco.

O mesmo argumento vale para os debates referentes à “solução de dois Estados” oferecida em Oslo. Essa oferta deve ser vista pelo que ela é: partição sob uma retórica distinta. Mesmo neste cenário, embora os termos do debate pareçam outros, Israel não só decidiria quanto território cederia, mas também o que aconteceria nos territórios de que abrisse mão. Embora a promessa da criação de um Estado tenha persuadido o mundo e alguns palestinos, ela logo começou a soar vazia. Mesmo assim, essas duas noções interligadas — retirada territorial e criação de um Estado — foram apresentadas como partes de um acordo de paz em Oslo em 1993. Poucas semanas após a assinatura conjunta no gramado da Casa Branca, os problemas já despontavam no horizonte. No final de setembro, os preceitos vagos do Acordo já haviam se traduzido, na prática, em uma nova realidade geopolítica sob os termos do que foi chamado de Acordo Oslo II (ou Taba[4]). Isso incluía não só a partição da Cisjordânia e da Faixa de Gaza em zonas “judaicas” e “palestinas”, mas também a partição de todas as áreas em pequenos cantões ou bantustões. A cartografia de paz de 1995 consistia em uma série de zonas palestinas repartidas que lembravam, nas palavras de muitos comentaristas, um queijo suiço[5].

Assim que esse projeto veio à tona, as negociações afundaram depressa. Antes do encontro final da cúpula no verão de 2000, ativistas, acadêmicos e políticos palestinos haviam percebido que o processo que tinham apoiado não envolvia a retirada militar concreta dos israelenses dos territórios ocupados, tampouco a promessa de um verdadeiro Estado palestino. A farsa foi revelada e os avanços cessaram. O sentimento de desespero que se seguiu contribuiu para desencadear o segundo levante palestino no outono de 2000.

O processo de paz de Oslo não fracassou apenas por sua adesão ao princípio da partição. O Acordo original previa uma promessa israelense de negociar as três questões que mais perturbavam os palestinos — o destino de Jerusalém, os refugiados e as colônias judaicas — assim que o período inicial de cinco anos chegasse a um desfecho exitoso. Nesse meio-tempo, os palestinos precisariam provar que eram capazes de desempenhar com eficácia o papel de seguranças terceirizados de Israel, prevenindo guerrilhas e ataques terroristas contra o Estado judeu, seu exército, seus colonos e seus cidadãos. Ao contrário da promessa feita na DOP Oslo, quando os cinco anos da primeira etapa chegaram ao fim, a segunda etapa, em que seriam discutidas as questões consideradas fundamentais pelos palestinos, jamais começou. O governo Netanyahu afirmou que não podia dar início a essa segunda etapa devido ao “mau comportamento” dos palestinos (que incluía “incitação em escolas” e condenação branda aos ataques terroristas contra soldados, colonos e seus cidadãos). Na verdade, porém, o processo foi interrompido principalmente em razão do assassinato do primeiro-ministro israelense Yithzak Rabin em novembro de 1995. O assassinato foi sucedido pela vitória do partido Likud, chefiado por Netanyahu, nas eleições nacionais de 1996. A objeção pública do novo primeiro-ministro ao Acordo emperrou o processo. Mesmo depois que os estadunidenses forçaram Israel a retomar as negociações, o progresso foi extremamente lento, e só voltou a fluir quando o partido trabalhista voltou ao poder com Ehud Barak em 1999. Barak estava
determinado a concluir o processo e obter um acordo final, e para isso tinha total apoio da gestão Clinton.

A oferta final de Israel, apresentada durante as discussões em Camp David no verão de 2000, propunha um pequeno Estado palestino, com capital em Abu Dis, mas sem o desmantelamento significativo dos assentamentos e nenhuma esperança de retorno para os refugiados. Após os palestinos rejeitarem a oferta, houve uma tentativa informal do Ministro do Exterior israelense delegado, Yossi Beilin, de oferecer uma proposta mais razoável. Ele passou a concordar com o retorno dos refugiados a um futuro Estado palestino e sua repatriação simbólica a Israel. Mas esses termos informais jamais foram ratificados pelo Estado (Graças ao vazamento de documentos cruciais, conhecidos como “Palestine papers”, hoje podemos vislumbrar melhor o caráter dessas negociações, e recomendo que os leitores interessados em examinar outros aspectos da negociação realizada entre 2001 e 2007 consultem essa fonte acessível[6].) Ainda assim, conforme as negociações caiam por terra, foram as lideranças palestinas, e não os políticos israelenses, os acusados de intransigência, 0 que levou ao fracasso de Oslo. Isso é um desserviço para os envolvidos e para a seriedade com que os prospectos de partição foram encarados.

A exclusão da agenda do direito de retorno dos palestinos é a segunda razão para que o Acordo de Oslo tenha sido irrelevante como processo de paz. Se a ideia de partição limitava o conceito de “Palestina” à Cisjordânia e à Faixa de Gaza, ignorar a questão dos refugiados e das minorias palestinas dentro de Israel reduzia o “povo palestino”, em termos demográficos, a menos da metade da nação palestina. Essa falta de atenção à questão dos refugiados não era novidade. Desde o início dos esforços de paz na Palestina após o Mandato Britânico, os refugiados têm sido alvo de uma campanha de repressão e negligência. Já na primeira conferência de paz após 1948 (0 encontro de Lausanne, realizado em abril de 1949), o problema dos refugiados foi excluido da agenda de paz e desatrelado do conceito de “Conflito Palestino”. Israel participou daquela conferência apenas porque era uma pré-condição para que fosse aceito como membro pleno da ONU[7] — exigiu-se ainda que Israel assinasse um protocolo, o Protocolo de Maio, comprometendo-se com os termos da Resolução 194, que incluía uma convocatória incondicional para o retorno dos refugiados palestinos às suas casas ou o pagamento de compensações. Um dia após a assinatura, em maio de 1949, Israel foi aceito na ONU e recuou imediatamente de seu compromisso com o protocolo.

Na esteira da Guerra de Junho de 1967, o mundo aceitou a alegação israelense de que o conflito na Palestina começou com essa guerra e foi essencialmente um embate referente ao futuro da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Diversos regimes árabes também aceitaram essa visão, abandonando a pauta do problema dos refugiados. No entanto, os campos de refugiados logo se tornaram locais de intensa atividade política, social e cultural. Foi neles, por exemplo, que o movimento de libertação palestino renasceu. Só a ONU continuou mencionando em diversas de suas resoluções a obrigação da comunidade internacional de garantir a repatriação total e incondicional dos refugiados palestinos — compromisso assumido pela primeira vez na Resolução 194 de 1948. Até hoje a ONU mantém um grupo intitulado “Comissão sobre o Exercício dos Direitos Inalienáveis do Povo Palestino”, mas ele teve pouco impacto no processo de paz.

O Acordo de Oslo não foi diferente. Nesse documento, a questão dos refugiados foi relegada a uma sub-cláusula, quase invisível em meio à massa de palavras. Os parceiros palestinos do Acordo contribuíram para essa ofuscação, provavelmente mais por negligência que por intenção, mas o resultado foi o mesmo. O problema dos refugiados — o centro do conflito palestino, uma realidade reconhecida por todos os palestinos, em todos os lugares, e por qualquer pessoa solidária à causa palestina — foi marginalizado nos documentos de Oslo. Como alternativa, a questão foi entregue a um grupo multilateral de vida breve a quem foi solicitado foco nos refugiados de 1967, ou seja, nos palestinos que foram expulsos ou fugiram após a Guerra de Junho. O Acordo de Oslo de fato substituiu uma tentativa embrionária, nascida durante o processo de paz de Madri em 1991, de formar um grupo multilateral para discutir a questão dos refugiados com base na Resolução 194 da Assembleia Geral da ONU. O grupo foi liderado pelos canadenses — que consideravam o direito de retorno um mito — até 1994, e então se esvaziou. Em todo caso, o grupo parou de se reunir sem qualquer anúncio oficial, e o destino até mesmo dos refugiados de 1967 (mais de 300 mil) foi abandonado[8].

A implementação do Acordo após 1993 apenas piorou as coisas. As regras exigiam que as lideranças palestinas abdicassem do direito de retorno. Assim, apenas cinco anos após a divisão em cantões da “entidade palestina” e sua transformação em um bantustão, a liderança palestina ganhou permissão para expressar seu desejo de incluir o problema dos refugiados nas negociações por uma solução permanente da questão palestina. No entanto, o Estado israelense conseguiu estabelecer os termos da discussão, e escolheu dissociar o “problema dos refugiados”, para ele uma queixa legítima dos palestinos, do “direito de retorno”, que descreveu como uma provocação palestina.

A questão dos refugiados não se saiu melhor em 2000, quando a cúpula se reuniu em Camp David para a última tentativa fracassada de salvar o acordo. Em janeiro de 2000, o governo Barak apresentou uma proposição, endossada pelos negociantes estadunidenses, definindo os parâmetros para as negociações. Tratava-se de um ditame israelense, e os palestinos não conseguiram produzir uma contraproposta até a reunião da cúpula no verão seguinte. As “negociações” finais foram basicamente um esforço conjunto de Israel e Estados Unidos para que os palestinos apoiassem uma proposição que incluía, dentre outras coisas, a rejeição absoluta e categórica do direito de retorno palestino. O documento deixava em aberto o número de refugiados que poderia retornar aos territórios controlados pela Autoridade Palestina; contudo, todas as partes envolvidas sabiam que essas áreas abarrotadas não podiam comportar mais gente, e que havia espaço de sobra para a repatriação de refugiados no resto de Israel e da Palestina. Essa parte da discussão foi um gesto sem sentido, incluído apenas para silenciar qualquer crítica sem oferecer uma solução real.

Portanto o processo de paz de 1990 mal pode ser chamado assim. A insistência na partição e a retirada de pauta da questão dos refugiados reduziu o processo de Oslo, na melhor das hipóteses, a um remanejo militar, uma reestruturação do controle israelense na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Na pior das hipóteses, ele inaugurou um novo sistema de controle que tornou a vida dos palestinos em territórios ocupados muito pior do que antes.

Após 1995, ficou dolorosamente evidente que, na prática, o resultado do Acordo de Oslo não havia sido a paz, mas a ruína da sociedade palestina. Após o assassinato de Rabin e a eleição de Netanyahu em 1996, o Acordo virou um discurso de paz sem qualquer relevância para a realidade cotidiana. Durante o período das conversas — entre 1996 e 1999 —, novos assentamentos foram construídos e novas punições coletivas foram impostas aos palestinos. Em 1999, uma visita à Cisjordânia e à Faixa de Gaza bastaria para persuadir mesmo aqueles que acreditavam na solução de dois Estados a concordarem com o pesquisador israelense
Meron Benvenisti, que escreveu que Israel havia criado fatos irreversíveis com seus atos: a solução de dois Estados foi assassinada por Israel[9]. Como o processo de Oslo não foi um processo de paz genuíno, a participação dos palestinos nele e sua relutância em leva-lo adiante não indica uma suposta cultura política violenta e intransigente, mas uma resposta natural à farsa diplomática que consolidou e aprofundou o controle israelense sobre os territórios ocupados.

Isso nos leva ao segundo mito acerca do processo de Oslo, segundo o qual a intransigência de Yasser Arafat seria responsável pelo insucesso da cúpula de Camp David em 2000. Duas perguntas precisam ser respondidas aqui. Em primeiro lugar: o que aconteceu no verão de 2000 em Camp David; quem foi o responsável pelo fracasso da cúpula? Em segundo lugar: quem foi o responsável pela violência da Segunda Intifada? As duas perguntas nos ajudarão a abordar diretamente a hipótese corrente segundo a qual Arafat era um beligerante que foi a Camp David para enterrar o processo de paz e depois retornou a Palestina determinado a iniciar uma nova Intifada.

Antes de respondermos a essas perguntas, devemos lembrar como era a realidade nos territórios ocupados no dia em que Arafat partiu para Camp David. Meu argumento central é o de que Arafat foi a Camp David para mudar a realidade, enquanto os israelenses e estadunidenses chegaram lá determinados a conservá-la. O processo de Oslo havia transformado os territórios ocupados em uma geografia do desastre, tornando a qualidade de vida dos palestinos muito pior após o Acordo se comparada ao período anterior a ele. Já em 1994, o governo de Rabin forçara Arafat a aceitar o modo como pretendia implementar o Acordo. A Cisjordânia foi dividida nas famosas áreas A, B e C. A Area C ficou sob controle direto de Israel e correspondia à metade da Cisjordânia. A movimentação dentro dessas áreas e entre elas se tornou quase impossível, e a Cisjordânia foi desligada da Faixa de Gaza. Gaza já estava dividida entre palestinos e colonos judeus, que utilizavam a maior parte dos recursos hídricos e viviam em comunidades fechadas cercadas de arame farpado. Assim, o resultado final desse suposto processo de paz foi a deterioração da qualidade de vida dos palestinos.

Essa era a realidade quando Arafat chegou a Camp David no verão de 2000. Queriam que ele assinasse, como um acordo final, os fatos irreversíveis que haviam tornado a solução de dois Estados uma configuração que, na melhor das hipóteses, deixaria os palestinos com dois pequenos bantustões, e na pior, permitiria que Israel anexasse novos territórios. O acordo também o forçava a abdicar de quaisquer reivindicações palestinas futuras ou de propor uma maneira de aliviar o sofrimento imposto todos os dias à maioria dos palestinos.

Temos um relatório autêntico e confiável sobre o que aconteceu em Camp David feito por Hussein Agha e Robert Malley, do Departamento de Estado[10]. Sua narrativa detalhada apareceu na New York Review of Books e começa desmontando a versão israelense de que Arafat teria arruinado a cúpula. O artigo argumenta que o principal problema para Arafat era que, nos anos posteriores a Oslo, a vida dos palestinos nos territórios ocupados só tinha piorado. De forma bem razoável, segundo esses dois oficiais estadunidenses, ele sugeriu que, ao invés de se apressar “para encerrar o conflito de uma vez por todas” em duas semanas, Israel deveria aceitar algumas medidas que ajudariam a restaurar a fé dos palestinos na utilidade e nos benefícios de um processo de paz. O período de duas semanas, a propósito, não era uma
demanda israelense, mas uma tola janela de tempo imposta por insistência de Bill Clinton, que estava preocupado com o próprio legado.

Havia duas propostas principais que Arafat considerava abertas a discussão e que, caso aceitas, poderiam melhorar a realidade concreta. A primeira era reduzir a colonização intensa na Cisjordânia, que havia crescido desde Oslo. A segunda era dar fim à brutalidade da vida cotidiana palestina, causada pelas severas restrições de movimento, punições coletivas frequentes, prisões sem julgamento e humilhações constantes nos postos de controle. Essas práticas ocorriam em todas as áreas onde havia contato entre o exército ou a administração civil israelenses (a instituição que geria os territórios) e a população local.

Segundo o depoimento dos oficiais estadunidenses, Barak se recusou a mudar a política de Israel referente às colônias judaicas ou ao abuso diário dos palestinos. Ele assumiu uma posição rígida que deixou Arafat sem escolha. Nada do que Barak propusesse no acordo final significaria muito se não houvesse a promessa de mudanças imediatas na realidade concreta. Como era de se prever, Arafat foi execrado por Israel e seus aliados, que o descreveram como um beligerante que, logo após deixar Camp David, incitou a Segunda Intifada. O mito aqui é que a Segunda Intifada teria sido um ataque terrorista patrocinado, e talvez até planejado, por Yasser Arafat. A verdade é que foi uma demonstração em massa da insatisfação com as traições de Oslo, agravadas pelas provocações de Ariel Sharon. Em setembro de 2000, no papel de líder da oposição, Sharon incitou a revolta ao visitar Haram al-Sharif, o Monte do Templo, com um grande corpo de segurança e ampla cobertura midiática.

De início a ira palestina se expressou em manifestações não violentas suprimidas por Israel com uso brutal da força. A repressão impiedosa levou a uma resposta mais desesperada: os homens-bomba, usados como último recurso contra a maior potência militar da região. Correspondentes de jornais israelenses deixaram relatos claros de como suas reportagens sobre as primeiras etapas da Intifada — que descreviam um movimento não violento esmagado pelo exército de Israel — foram engavetadas por seus editores para evitar contradições com a narrativa do governo. Um deles foi um editor-chefe do Yeidot Ahronoth, principal jornal diário do Estado, que escreveu um livro sobre a desinformação produzida pela mídia israelense durante o início da Segunda Intifada[11]. Propagandistas israelenses alegavam que o comportamento dos palestinos só confirmava o famoso ditado do veterano super-diplomata israelense Abba Eban, para quem os palestinos não perdiam uma oportunidade de perder uma oportunidade de paz.

Hoje podemos compreender melhor o que desencadeou essa furiosa reação israelense. Em seu livro Boomerang, dois experientes jornalistas israelenses, Ofer Shelah e Raviv Drucker, entrevistam o chefe do estado-maior e estrategista do Ministério da Defesa, fornecendo-nos dados internos da visão desses oficiais sobre o assunto[12]. Eles concluem que, no verão de 2000, o exército israelense ficou frustrado após sua humilhante derrota para o Hezbollah no Líbano. Havia o temor de que essa derrota sinalizasse uma fraqueza do exército, tornando necessária uma demonstração de força. Reafirmar sua autoridade dentro dos territórios ocupados era exatamente o tipo de demonstração de força bruta que o “invencível” exército israelense precisava. Foram emitidas ordens para que respondesse com todo seu poderio, e assim o exército o fez. Durante a retaliação israelense aos ataques terroristas contra um hotel no resort costeiro de Netanya, em abril de 2002 (em que foram mortas trinta pessoas), o exército usou, pela primeira vez, aviões para bombardear cidades palestinas e campos de refugiados densamente povoados na Cisjordânia. Ao invés de caçar os indivíduos responsáveis pelos ataques, os armamentos pesados mais letais foram usados contra pessoas inocentes.

Em seu jogo de apontar culpados pelo fracasso em Camp David, Israel e Estados Unidos também gostavam de lembrar a opinião pública que os lideres palestinos tinham um problema crônico: na hora da verdade, eles sempre demonstravam preferência pela guerra. A ideia de que “não há ninguém do lado palestino com quem se possa conversar” ressurgiu como análise corriqueira entre especialistas e comentaristas em Israel, na Europa e nos Estados Unidos nesse período. Era uma alegação particularmente ciníca. O governo e o exército israelenses haviam tentado impor à força sua própria leitura do Acordo de Oslo — com o objetivo de que os palestinos consentissem com uma ocupação permanente —, e nem mesmo Arafat, fragilizado como estava, pode aceitar isso. Assim como tantos outros lideres que poderiam ter guiado seu povo à reconciliação, Arafat foi alvo dos israelenses. A maioria desses lideres acabou assassinada, como provavelmente aconteceu com o próprio Arafat. A execução seletiva de lideres palestinos, inclusive moderados, não era um fenômeno novo. Israel adotou essa política em 1972 ao assassinar Ghassan Kanafani, poeta e escritor que poderia ter conduzido seu povo a paz. E emblemático que ele, um ativista secular e de esquerda, tenha sido um dos alvos de Israel, que mais tarde “lamentaria” não ter parceiros de paz como aqueles que assassinou.

Em maio de 2001, o presidente George Bush filho nomeou o senador Robert Mitchell como enviado especial para o Oriente Médio. Mitchell elaborou um relatório sobre as causas da Segunda Intifada e apontou: “Não dispomos de qualquer base para concluir que houve um plano deliberado da Autoridade Palestina (AP) de iniciar uma campanha de violência na primeira oportunidade; tampouco para concluir que havia algum plano deliberado [do governo de Israel] para reagir com força letal[13]. Por outro lado, ele culpou Ariel Sharon por provocar instabilidade social ao visitar e violar o caráter sagrado da mesquita de Al-Aqsa e os lugares sagrados do Islã.

Em resumo, mesmo o politicamente enfraquecido Arafat percebeu que a interpretação israelense de Oslo em 2000 significava o fim de qualquer esperança de vida normal para os palestinos e os condenava a um maior sofrimento futuro. A seu ver, esse cenário estava errado não apenas do ponto de vista moral, mas também fortalecia (como ele bem sabia) a posição daqueles que viam na luta armada a única maneira de libertar a Palestina. Israel poderia ter interrompido a Segunda Intifada a qualquer momento, mas o exército precisava de uma demonstração de “sucesso”. Só com a operação bárbara do “Escudo Defensivo” em 2002 e a construção do infame “muro do apartheid” — seu tão desejado sucesso — eles con- seguiriam, por algum tempo, reprimir a revolta.


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  1. Nur Masalha, Expulsão dos palestinos, op. cit. p. 107. ↩︎

  2. Walid Khalidi, “Revisiting the UNGA Partition Resolution”, Journal of Palestine Studies, 27:1, 1997, pp. 5-21. ↩︎

  3. O melhor relato dos acontecimentos que resultaram no Acordo de Oslo é Hilde Henriksen Waage, “Postscript to Oslo: The Mystery of Norway’s Missing Files”, Journal of Palestine Studies, 38:1, 2008, pp. 54-65. ↩︎

  4. Ver “1993 Oslo Interim Agreement”, disponivel em: <israclipalestinian.procon.org>. ↩︎

  5. Ver Ian Black, “How the Oslo Accord Robbed the Palestinians”, The Guardian, 4 de fevereiro de 2013. ↩︎

  6. Ver “Meeting Minutes: Taba Summit — Plenary Session”, acessado em: <ihepalestine-papers.com>. ↩︎

  7. Ilan Pappe, The Making of the Arab-Israeli Conflict, 1948-1951, Londres e Nova York: I.B. Tauris, 1992, pp. 203— 43. ↩︎

  8. Robert Bowker, Palestinian Refugees: Mythology, Identity and the Search for Peace, Boulder: Lynne Rienner Publishers, 2003, p. 157. ↩︎

  9. Meron Benvenisti, West Bank Data Project: A Survey of Israel’s Politics, Jerusalem: AEI Press, 1984. ↩︎

  10. Robert Malley e Hussein Agha, “Camp David: The Tragedy of Errors”, New York Review of Books, 9 de agosto de 2001. ↩︎

  11. Daniel Dor, The Suppression of Guilt: The Israeli Media and the Reoccupation of the West Bank, Londres: Pluto Press, 2005. ↩︎

  12. Raviv Drucker e Ofer Shelah, Boomerang, Jerusalem: Keter, 2005 (em hebraico). ↩︎

  13. Para o texto completo, ver “Sharm El-Sheikh Fact-Finding Committee Report: ‘Mitchell Report’, 30 de abril de 2001, disponivel em: <ceas.curopa.cu>. ↩︎