A religião matou Deus e o homem perdeu sua bússola - Afirmar-se com Nietzsche

Nietzsche nos ensina, ao invés disso, que é em nome dos valores que o próprio cristianismo nos inculcou que este último nos parece agora suspeito. O cristianismo nos ensinou a venerar a verdade como a um deus. Mas é por causa desse amor melindroso da verdade que somos forçados a questionar as mentiras da religião. O cristianismo prega uma moral da compaixão. Mas é por causa dessa delicadeza moral que a absoluta crueldade – aqui como no além – com a qual o cristianismo trata seus inimigos se nos tornou insuportável.

“Em que já não somos cristãos: nós ultrapassamos o cristianismo, não porque estejamos muito distantes, mas porque vivíamos muito perto dele, ainda mais porque aí se encontram nossas raízes – é a nossa piedade mais severa, mais exigente, que nos proíbe hoje de ainda sermos cristãos” (Fragmento póstumo de 1885-1886, 2 [200]).

Sim, nós matamos Deus. Todavia, nossa consciência, nosso rigor, nossos escrúpulos, nossa sensibilidade moral e a honestidade intelectual que Nietzsche denomina probidade – coisas que devemos todas à religião – é que são culpados disso. Nós não o fizemos por falta de amor. Ao contrário, teríamos desejado que Deus nunca morresse, que ele cumprisse suas promessas e respeitasse os valores que nos revelou. Sua morte é, portanto, mais do que uma decepção. Trata-se de uma traição, de um verdadeiro abandono. O homem já não tem centro de gravidade, está tonto e se sente em queda livre.

A morte de Deus equivale a uma perda de sentido e direção. A religião cristã, com seu relato das origens e sua visão de um fim do mundo, com sua cartografia de um paraíso e de um inferno, colocando o homem na terra entre o céu e as trevas, estruturou o tempo e o espaço. Ela tornou a terra habitável para o homem construindo limites, muros, jardins distantes para descansar seus olhos, pátios internos para protegê-lo das tempestades do nada, campanários e minaretes para ajudá-lo a se manter ereto. Com as suas Tábuas da Lei, seus pecados e suas virtudes, suas promessas de uma vida eterna, de uma reparação das faltas e de uma recompensa pelos sacrifícios, a religião deu ao homem uma meta, uma esperança, um consolo para todos os amargores da vida. Ora, com a morte de Deus, o homem perdeu o quadro geral que o fazia suportar os sofrimentos, as dúvidas e as absurdidades da existência.


ebook MOC Afirmar-se com Nietzsche, Balthasar Thomass

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