A Guerra de Junho de 1967 foi uma guerra “sem escolha”
Dez mitos sobre Israel
-- Ilan Pappe
6 A Guerra de Junho de 1967 foi uma guerra “sem escolha”
Em junho de 1982, após os ataques de Israel ao Líbano, houve muito debate em torno do anúncio oficial de que a nação não teve escolha sendo seguir o curso das ações violentas que executou. Naquela época, a opinião pública israelense estava dividida entre os que consideravam a campanha necessária e justificada e os que duvidavam de sua validade moral. Ao argumentarem, os dois lados usaram a guerra de 1967 como referência, identificando o conflito anterior como um exemplo inquestionável de uma guerra “sem escolha”. Isso é um mito".
De acordo com a narrativa aceita, a guerra de 1967 forçou Israel a ocupar a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, e a mantê-las sob sua custódia até que o mundo árabe, ou os palestinos, estivessem dispostos a firmar a paz com o Estado judeu. Desse mito decorre outro — que discutirei em um capítulo à parte —, segundo o qual os lideres palestinos são intransigentes e, portanto, a paz é impossível. O argumento anterior dá a impressão de que o governo israelense é temporário: os territórios precisam permanecer sob custódia, à espera de uma postura mais “razoável” dos palestinos.
Para reavaliarmos a guerra de 1967, devemos antes voltar à guerra de 1948. A elite política e militar israelense vê essa última como uma oportunidade desperdiçada: um momento histórico em que Israel poderia, e deveria, ter ocupado toda a Palestina histórica, desde o Rio Jordão até o Mar Mediterrâneo. Isso só não foi feito em razão de um acordo com a vizinha Jordânia. Este conluio foi negociado durante os últimos dias do Mandato Britânico e, uma vez finalizado, limitou a participação militar do exército jordaniano nos esforços de guerra gerais dos árabes em 1948. Em troca, permitiu-se à Jordânia anexar áreas da Palestina que se tornaram a Cisjordânia. David Ben-Gurion, que manteve o acordo anterior a 1948 intacto, chamou a decisão de entregar a Cisjordânia aos jordanianos de bechiya ledorot — literalmente, uma decisão que seria lamentada pelas gerações futuras. Uma traducão mais metafórica poderia ser “um erro histórico fatal.[1]
Desde 1948, setores importantes da elite cultural, militar e política judaica vinham buscando uma oportunidade para retificar esse erro. De meados dos anos 1960 em diante eles planejaram em detalhes a criação de um Grande Israel que incluiria a Cisjordânia[2]. Eles quase executaram o plano em diversas conjunturas históricas, recuando apenas no último instante. Os casos mais notórios foram 1958 e 1960, quando David Ben-Gurion abortou a execução do plano por temer a reação internacional, no primeiro caso, e por razões demográficas, no segundo (calculando que Israel não seria capaz de incorporar um número tão grande de palestinos). A melhor oportunidade surgiu com a guerra de 1967. Explorarei as origens da guerra mais adiante neste capítulo, e argumentarei que, independentemente da narrativa histórica de suas causas, é preciso olhar com atenção para o papel desempenhado pela Jordânia. Era mesmo necessário, por exemplo, ocupar e reter a Cisjordânia para manter as relações relativamente boas que Israel tinha com a Jordânia desde 1948? Se a resposta for não, como acho que é, isso nos leva à questão de por que Israel optou por essa política, e o que isso nos diz da probabilidade de Israel vir a abrir mão da Cisjordânia no futuro. Mesmo que, como aponta a mitologia oficial israelense, a Cisjordânia tenha sido ocupada em retaliação as agressões jordanianas de 5 de junho de 1967, fica a questão de por que Israel permaneceu na Cisjordânia após a ameaça ter se dissipado. Afinal de contas, há muitos exemplos de ações militares agressivas que não resultaram na expansão territorial do Estado de Israel. Como tentarei mostrar neste capítulo, o plano de incorporar a Cisjordânia e a Faixa de Gaza ao território de Israel já existia em 1948, embora sua implementação só tenha começado em 1967.
A guerra de 1967 era inevitável? Podemos começar nossa resposta em 1958 — descrito na literatura acadêmica sobre o Oriente Médio como o ano revolucionário. Nesse ano, as ideias radicais e progressistas que levaram os Oficiais Livres do Egito a tomar o poder no Cairo começaram a impactar todo o mundo Árabe. Essa tendência recebeu apoio da União Soviética e, como seria quase inevitável, foi desafiada pelos Estados Unidos. Essa “encenação” da Guerra Fria no Oriente Médio abriu oportunidades para aqueles em Israel que buscavam um pretexto para corrigir o “erro histórico fatal’ de 1948. Isso foi impulsionado por um poderoso lobby dentro do governo e do exército de Israel, guiado pelos heróis de guerra de 1948 Moshe Dayan e Yigal Allon. Quando se formou um consenso no Ocidente, segundo o qual o “radicalismo” que emergia no Egito poderia engolfar outros países, incluindo a Jordânia, o lobby recomendou ao primeiro-ministro Ben-Gurion que procurasse a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para defender a ideia de uma invasão preventiva da Cisjordânia por Israel[3].
Esse cenário se tornou ainda mais plausível depois que o Iraque caiu nas mãos de oficiais progressistas, ou mesmo radicais. Em 14 de julho de 1958, um grupo de oficiais iraquianos empreendeu um golpe militar que derrubou a dinastia Hachemita. Os Hachemita haviam sido colocados no poder pelos britânicos em 1921 para manter o Iraque sob a esfera de influência do Ocidente. Uma mistura de recessão econômica, nacionalismo e conexões fortes com o Egito e a URSS desencadearam um movimento de protestos que resultou na tomada do poder pelos oficiais. Ela foi conduzida por um grupo que se autodenominava Oficiais Livres, liderado por Abd al-Karim Qasim, que, inspirado pelo grupo que havia derrubado a monarquia no Egito seis anos antes, substituiu a monarquia pela república do Iraque.
A época, também se temia no Ocidente que o Líbano fosse a próxima região a ser tomada por forças revolucionárias. A OTAN decidiu prevenir esse cenário enviando suas próprias forças (a Marinha dos EUA para o Líbano e as Forças Especiais Britânicas para a Jordânia). Não havia necessidade, tampouco vontade, de envolver Israel na guerra fria que se desenrolava no mundo árabe[4]. Quando Israel manifestou sua ideia de “salvar” ao menos a Cisjordânia, Washington rechaçou-a com firmeza. Parece, todavia, que Ben-Gurion ficou muito contente por ser barrado naquele momento. Ele não desejava sabotar a conquista demográfica de 1948 — não queria alterar o equilíbrio entre população árabe e judaica em um novo “grande” Israel incorporando os palestinos residentes na Cisjordânia[5]. Em seu diário, ele relata que explicara aos seus ministros que ocupar a Cisjordânia constituiria um grave perigo demográfico: “Falei a eles sobre o perigo de incorporar um milhão de árabes a um Estado cuja população é de 1,75 milhão[6]. Pelo mesmo motivo, ele se precaveu a outra tentativa do lobby mais predatório de explorar outra crise dois anos mais tarde, em 1960. Enquanto Ben-Gurion esteve no poder, o lobby, descrito com tanto brilhantismo no livro 1967 de Tom Segev, não alcançaria seus objetivos. No entanto, em 1960 havia se tornado muito mais difícil conter o lobby. Naquele ano, todos os ingredientes que marcariam a crise de 1967 já estavam na mesa e apresentavam o mesmo risco de provocar uma guerra. Mas a guerra foi evitada, ou ao menos postergada.
Em 1960, o primeiro ator relevante em cena era o presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, que adotou uma diplomacia de risco, como faria seis anos depois. Nasser intensificou sua retórica de guerra contra Israel, ameaçando deslocar suas tropas à desmilitarizada Península do Sinai e bloquear a passagem de navios na cidade de Eilat, ao Sul. Sua motivação foi a mesma em 1960 e 1967: ele temia que Israel atacasse a Síria, país que, entre as guerras de 1958 e 1962, manteve uma união formal com o Egito chamada de República Árabe Unida (RAU). Desde que Israel e Síria assinaram um acordo de armistício no verão de 1949, algumas questões ficaram pendentes de resolução. Dentre elas estavam algumas porções de terra, classificadas pela ONU como “terras de ninguém”, cobiçadas pelos dois lados. De tempos em tempos, Israel incentivava membros dos kibutzim e assentamentos adjacentes a essas terras a cultivá-las, sabendo muito bem que isso provocaria uma resposta da Síria a partir das Colinas de Golã acima delas. Foi exatamente o que aconteceu em 1960, quando a situação se agravou de forma previsível em um ciclo de olho por olho: a força aérea israelense foi usada para ganhar experiência real de batalha e demonstrar sua supremacia em relação aos jatos russos usados pela força aérea Síria. Houve combates aéreos, troca de artilharia e registro de queixas ao comitê de armistício; uma calmaria tensa reinaria até a erupção seguinte de violência[7].
Uma segunda fonte de atrito entre Síria e Israel foi a construção pelos israelenses de um sistema nacional de transporte de água — “national water carrier” é o nome oficial, em inglês, que os israelenses deram a um imenso projeto que inclui viadutos, tubulações e canais — entre os estuários do Rio Jordão e o sul do país. Os trabalhos no projeto começaram em 1953 e incluiram a extração de recursos aquáticos de vital necessidade para a Síria e o Líbano. Em resposta, os lideres sírios conseguiram convencer seus aliados egípcios na RAU de que Israel poderia lançar uma ofensiva militar com força total contra a Síria, a fim de garantir o ponto estratégico das Colinas de Golã e os recursos do Rio Jordão.
Nasser tinha outro motivo para interferir no precário equilíbrio dentro e ao redor da Palestina histórica. Ele queria romper a inércia diplomática do período e desafiar a indiferença global à questão palestina. Como Avi Shlaim mostrou em seu livro "A muralha de ferro", Nasser tinha esperanças de encontrar uma maneira de sair do impasse quando negociou com Moshe Sharret, pacífico ministro do exterior israelense e, durante um breve período em meados dos anos 1950, primeiro-ministro[8]. Contudo, Nasser entendeu que o poder estava nas mãos de Ben-Gurion, e com seu retorno ao cargo de primeiro-ministro em 1955 já não havia muita esperança de paz entre os dois Estados.
Durante as negociações, os dois lados debateram a possibilidade de uma passagem de terra egípcia no Neguev em troca do fim do impasse. Foi uma ideia incipiente que não teve maiores desdobramentos, e não temos como saber se ela teria levado a um tratado de paz bilateral, O que sabemos é que havia poucas chances de qualquer acordo de paz bilateral entre Israel e Egito enquanto Ben-Gurion fosse primeiro-ministro de Israel. Mesmo fora do poder, ele usou suas relações dentro do exército para convencer os comandantes a lançarem diversas operações militares e provocarem as forças egípcias na Faixa de Gaza durante o curso das negociações. O pretexto para essas operações era a infiltração de refugiados palestinos em Israel desde a Faixa de Gaza, em uma zona que foi se tornando cada vez mais militarizada até se transformar em uma verdadeira guerra de guerrilha contra o Estado judeu. Israel reagiu destruindo bases egípcias e matando soldados egípcios[9].
Os esforços de paz foram enterrados para todos os efeitos assim que Ben-Gurion retornou ao poder e se uniu em 1956 a França e Grã-Bretanha em uma aliança militar cujo objetivo era derrubar Nasser. Não surpreende que, quatro anos depois, ao cogitar uma guerra contra Israel, Nasser tenha encarado os próprios atos como um movimento preventivo para salvar seu regime de um possível ataque anglo-franco-israelense. Assim, em 1960, quando a tensão na fronteira entre Israel e Síria aumentou e não havia nenhum progresso na frente diplomática, Nasser explorou uma nova estratégia, a qual nos referimos antes como “diplomacia de risco”. O propósito de seu exercício era testar constantemente os limites das possibilidades. Nesse caso, examinar o quanto as preparações e ameaças militares poderiam mudar a realidade política sem que houvesse guerra de fato. O sucesso dessa diplomacia de risco depende não só de quem a inicia, mas também das reações imprevisíveis daqueles contra quem a política é adotada. E é ai que tudo pode dar muito errado, como aconteceu em 1967.
Nasser implementou essa estratégia pela primeira vez em 1960, e repetiu-a de forma similar em 1967. Ele enviou forças à Península do Sinai — supostamente uma zona desmilitarizada, pelo acordo que encerrara a guerra de 1956. O governo israelense e a ONU agiram com muita sensatez ao se depararem com essa ameaça em 1960. O secretário-geral da ONU, Dag Hammarskjéld, assumiu uma postura firme e exigiu a retirada imediata das forças egípcias. O governo israelense convocou suas forças da reserva, mas enviou uma mensagem clara de que não iniciaria uma guerra[10].
Tudo isso teve um papel importante para desencadear a violência as vésperas da guerra de 1967. Duas personalidades, contudo, já não estavam envolvidas: David Ben-Gurion e Dag Hammarskjéld. Ben-Gurion havia deixado o cenário político em 1963. Por ironia, somente após sua partida o lobby em prol de um Grande Israel conseguiu planejar o passo seguinte. Até então, a obsessão demográfica de Ben-Gurion havia evitado a tomada da Cisjordânia, mas também resultou na administração militarizada imposta por Israel a diversos grupos palestinos, algo bem conhecido hoje. A abolição desse regime em 1966 permitiu que um aparato já estabelecido controlasse tanto a Cisjordânia como a Faixa de Gaza mesmo antes da erupção da Guerra de Junho de 1967. O governo militar imposto por Israel à minoria palestina em 1948 se baseava nas regulações emergenciais do Mandato Britânico, que tratavam a população civil como um potencial grupo estrangeiro, despojando-a assim de seus direitos humanos e civis básicos. Governadores militares foram empossados em áreas palestinas com autoridade executiva, judicial e legislativa. Em 1966 essa máquina já estava muito bem azeitada e incluía centenas de empregados que serviriam de núcleo para um regime semelhante quando ele fosse imposto à Cisjordânia e à Faixa de Gaza.
Assim, o governo militar abolido em 1966 foi imposto em 1967 nessas duas regiões; e tudo estava pronto para uma invasão. Desde 1963, um grupo de especialistas israelenses do exército, do serviço público e da academia vinha se preparando para a transição, elaborando um manual detalhado para administrar um território seguindo regulações de emergência, caso surgisse a oportunidade[11]. Isso conferiu poder absoluto ao exército em todas as esferas da vida. A oportunidade para deslocar esse aparato de um grupo palestino (a minoria palestina em Israel) a outro (os palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza) surgiu em 1967, quando a diplomacia de risco de Nasser foi encorajada pelas lideranças soviéticas, que tinham convicção de que um ataque israelense na Síria era iminente nos últimos dias de 1966[12]. No verão daquele ano, um novo grupo de oficiais e ideólogos havia perpetrado um golpe militar e assumido o poder do Estado sírio (então conhecido como o novo “Ba’ath”). Uma das primeiras ações do novo regime foi enfrentar com maior firmeza os planos de Israel de explorar as Águas do Rio Jordão e de seus estuários. Eles começaram a construir seu próprio sistema de distribuição nacional e desviaram o rio para seus próprios fins. O exército israelense bombardeou o novo projeto, o que levou a enfrentamentos aéreos frequentes e cada vez mais intensos entre as duas aeronáuticas. O novo regime da Síria também tinha um olhar favorável para o recém-formado movimento de libertação nacional da Palestina. Isso, por sua vez, estimulou o Fatah a dar início a uma guerra de guerrilha contra Israel nas Colinas de Golã, usando o Líbano como base de lançamento para os seus ataques. Isso só serviu para aumentar a tensão entre os dois Estados.
Aparentemente, até abril de 1967 Nasser ainda esperava que o seu histrionismo fosse suficiente para forçar uma mudança de status quo, sem que fosse preciso recorrer a guerra. Ele assinou um tratado de defesa com a Síria em novembro de 1966, declarando sua intenção de prestar ajuda caso o país fosse atacado por Israel. Ainda assim, a deterioração da fronteira entre Israel e Síria atingiu um grau ainda mais baixo em abril de 1967. Israel empreendeu um ataque militar as forças sírias nas Colinas de Golã que tinha por objetivo, segundo o então chefe das forças armadas israelenses, Yitzhak Rabin, “humilhar a Síria[13]. Naquele ponto, Israel parecia estar fazendo todo o possível para provocar uma guerra no mundo Árabe. Só então Nasser decidiu repetir seu gambito de 1960 e despachar tropas à Península do Sinai, fechando o Estreito de Tiran, uma pequena passagem que conecta o Golfo de Aqaba ao Mar Vermelho e, portanto, capaz de interromper, ou retardar, o tráfego marítimo até Eilat, o porto mais austral de Israel. Como em 1960, Nasser esperou para ver como a ONU reagiria. Em 1960, Dag Hammarskjöld não tinha ficado impressionado e não removeu as tropas da ONU instaladas lá desde 1956. O novo secretário-geral, U Thant, não estava tão convicto e retirou as forças da ONU quando as tropas egípcias adentraram a Península. Isso elevou ainda mais as tensões.
Entretanto, o fator mais importante nessa corrida para a guerra foi a ausência de qualquer desafio oficial à belicosidade dentro das lideranças israelenses da época. Isso poderia ter gerado algum atrito interno, que atrasaria o desejo predatório de um conflito e permitiria à comunidade internacional buscar uma solução pacifica. Os Estados Unidos empreendiam
um esforço diplomático que ainda estava em suas etapas iniciais quando Israel desferiu seu ataque aos vizinhos árabes em 5 de junho de 1967. O gabinete israelense não tinha a intenção de fornecer o tempo necessário aos negociantes da paz. Aquela era uma oportunidade de ouro que não podiam desperdiçar.
Em reuniões decisivas do gabinete israelense antes da guerra, Abba Eban perguntou ingenuamente aos comandantes das forças armadas e a seus colegas qual era a diferença entre a crise de 1960 e a situação de 1967, pois achava que essa última poderia ser resolvida da mesma maneira[14]. E “uma questão de honra e dissuasão”, foi a resposta que lhe deram. Eban respondeu que perder jovens soldados era um custo humano muito alto a se pagar apenas em nome da honra e da dissuasão. Suspeito que tenham dito a ele outras coisas que não foram registradas nas atas, provavelmente sobre a importância de entender que aquela era uma oportunidade histórica para corrigir o “erro histórico fatal” de não ocupar a Cisjordânia em 1948.
A guerra começou no início da manhã de 5 de junho com um ataque israelense as forças aéreas egípcias, que quase a destruiram. Ainda no mesmo dia, sucederam-se ataques as forças aéreas da Síria, do Iraque e da Jordânia. Forças israelenses também invadiram a Faixa de Gaza na Península do Sinai e chegaram nos dias seguintes ao Canal de Suez, ocupando a península inteira. O ataque às forças aéreas jordanianas desencadeou a captura pelos jordanianos de uma pequena zona da ONU situada entre as duas partes de Jerusalém. Em três dias, após contendas violentas, o exército de Israel havia capturado Jerusalém Oriental (em 7 de junho), e dois dias depois expulsou as forças jordanianas da Cisjordânia.
Em 7 de junho, o governo israelense ainda estava em dúvida quanto a iniciar uma nova frente de batalha contra os sírios nas Colinas de Golã, mas o sucesso espantoso nos outros fronts persuadiu os políticos a permitirem que o exército ocupasse as Colinas. Em 11 de junho, Israel havia se tornado um mini-império, controlando as Colinas de Golã, a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e a Península do Sinai. Neste capítulo, vou focar na decisão israelense de ocupar a Cisjordânia.
As vésperas da guerra, a Jordânia havia ingressado em uma aliança militar com Síria e Egito segundo a qual, no instante em que Israel atacasse o Egito, a Jordânia seria obrigada a entrar na guerra. A despeito desse compromisso, o Rei Hussein enviou mensagens explicitas a Israel de que, caso uma guerra começasse, ele teria que fazer alguma coisa, mas sua reação seria breve e não incluiria uma guerra de verdade (posição muito semelhante à de seu avô em 1948). Na prática, o envolvimento jordaniano foi mais do que simbólico. Ele incluiu um bombardeio pesado de Jerusalém Ocidental e dos subúrbios a leste de Tel Aviv. Todavia, é importante observar a que a Jordânia reagia: suas forças aéreas haviam sido totalmente destruídas por Israel algumas horas mais cedo, por volta do meio-dia de 5 de junho. Assim, o Rei Hussein se sentiu obrigado a reagir com maior força do que provavelmente pretendia.
O problema era que o exército não estava sob seu controle, pois era comandado por um general egípcio. A narrativa corrente desses acontecimentos se baseia nas memórias do próprio Hussein e de Dean Rusk, secretário de Estado dos EUA a época. Segundo essa narrativa, Israel enviou uma mensagem conciliatória a Hussein pedindo que ele não se envolvesse na guerra (apesar da destruição das forças aéreas jordanianas). No primeiro dia, Israel ainda não estava disposto a levar muito longe sua ofensiva à Jordânia, mas a reação desta à destruição de suas forças aéreas levaram Israel a uma operação muito mais ampla no segundo dia. Hussein chegou a escrever em seu livro de memórias que mantivera o tempo todo a esperança de que alguém evitaria aquela insanidade, pois ele não podia desobedecer aos egípcios nem arriscar uma guerra. No segundo dia, instou os israelenses a se acalmarem e apenas então, segundo sua narrativa, Israel deu início a uma operação maior[15].
Há dois problemas com essa narrativa. Como seria possível esperar uma mensagem de reconciliação após o ataque as forças aéreas jordanianas? Mais importante, mesmo a narrativa segundo a qual Israel ainda estava em dúvidas de como lidar com a Jordânia no primeiro dia deixa explícito que, no segundo dia, os israelenses já não estavam dispostos a dar trégua ao oponente. Como Norman Finkelstein observou corretamente, se a intenção fosse destruir o que ainda restava do exército jordaniano e manter relações com o país árabe mais leal a Israel, uma curta operação na Cisjordânia, sem ocupação, teria sido suficiente[16]. O historiador israelense Moshe Shemesh examinou as fontes jordanianas e concluiu que, após o ataque de Israel ao vilarejo palestino de Samua em novembro de 1966 em uma tentativa de derrotar as guerrilhas palestinas, o alto comando jordaniano se convenceu de que Israel pretendia ocupar a Cisjordânia à força[17]. Eles não estavam errados.
Isso não aconteceu em 1966, como temiam, mas um ano depois. Toda a sociedade israelense estava inflamada pelo projeto messiânico de “libertar” os locais sagrados do judaísmo e fazer de Jerusalém a joia da nova coroa do Grande Israel. Sionistas de esquerda e de direita, e os apoiadores de Israel no Ocidente, também foram contagiados — e hipnotizados — por essa histeria eufórica. Além disso, o país não tinha nenhuma intenção de deixar a Cisjordânia e a Faixa de Gaza logo após a sua ocupação; em realidade, não desejava deixa-las em nenhum cenário. Essa postura deveria servir como mais uma prova da responsabilidade israelense pela deterioração final da crise de maio de 1967, transformando-a em uma guerra plena.
A importância dessa conjuntura histórica para Israel pode ser vista no modo como o governo suportou a forte pressão internacional para que se retirasse de todos os territórios ocupados em 1967, conforme solicitado na famosa Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU muito pouco tempo após o final da guerra. Como os leitores devem saber, uma resolução do Conselho de Segurança tem mais peso que uma resolução da Assembleia Geral. E essa foi uma das poucas resoluções do Conselho criticando Israel que não foram vetadas pelos Estados Unidos.
Hoje temos acesso às minutas de uma reunião do governo israelense nos dias imediatamente posteriores à ocupação. Aquele era o décimo terceiro governo de Israel, e sua composição é muito relevante para o argumento que estou construindo aqui. Era um governo unitário de modo jamais visto — antes ou depois — em Israel. Todo o espectro político de judeus e sionistas estava representado. A exceção do Partido Comunista, todos os partidos tinham um representante no governo, fossem de esquerda, direita ou centro. Partidos socialistas como Mapam, partidos de direita como o Herut de Menachem Begin, e os partidos liberais ou religiosos foram todos contemplados. Ao ler as minutas, tem-se a impressão de que os ministros sabiam que representavam um amplo consenso em sua própria sociedade. Essa convicção foi alimentada ainda mais pelo clima de euforia que tomou conta de Israel após a blitzkrieg triunfante que durou apenas seis dias. Nesse cenário, podemos entender melhor as decisões tomadas pelos ministros logo após a guerra.
Além disso, muitos desses políticos esperavam desde 1948 por esse momento. Eu iria ainda mais longe e diria que a tomada da Cisjordânia em particular, com suas localidades bíblicas ancestrais, era um objetivo sionista mesmo antes de 1948 e se adequava a lógica do projeto sionista como um todo. Essa lógica pode ser resumida como o desejo de tomar a maior parte possível da Palestina com o menor número de palestinos possível. O consenso, a euforia e o contexto histórico explicam por que nenhum governo israelense subsequente jamais foi contra as decisões tomadas por esses ministros.
Sua primeira decisão foi que Israel não poderia existir sem a Cisjordânia. Métodos diretos e indiretos para controlar a região foram apresentados pelo ministro da agricultura, Yigal Allon, quando ele distinguiu as áreas onde os assentamentos judeus poderiam ser construídos das áreas densamente habitadas por palestinos, que deveriam ser governadas indiretamente’[18]. Allon mudou de ideia alguns anos depois quanto ao método de gestão indireta. De início, ele tinha a esperança de que os jordanianos ficassem tentados a ajudar Israel a governar partes da Cisjordânia (provavelmente, embora isso jamais tenha sido verbalizado, mantendo as cidadanias e leis jordanianas nas “zonas árabes” da Cisjordânia). No entanto, a resposta morna da Jordânia a esse plano levou-o a considerar a autogestão palestina a melhor opção para essas regiões.
A segunda decisão foi não incorporar os habitantes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza como cidadãos do Estado de Israel. Isso não valia para os palestinos que moravam no que Israel chamava à época de Grande Jerusalém. A definição dessa área, e de quais de seus moradores tinham direito à cidadania israelense, mudou conforme o espaço foi crescendo em tamanho. Quanto maior a Grande Jerusalém, maior o número de palestinos ali. Hoje há 200 mil palestinos dentro de seus limites. Para garantir que nem todos sejam contabilizados como cidadãos israelenses, muitos de seus bairros foram declarados vilarejos da Cisjordânia[19]. Estava claro para o governo que recusar o direito à cidadania e, ao mesmo tempo, impedir a independência desses moradores condenaria os habitantes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza a uma vida sem direitos humanos e civis básicos.
A questão seguinte, portanto, era quanto tempo o exército israelense permaneceria ocupando as áreas palestinas. Ao que parece, para a maioria dos ministros a reposta era, e ainda é: por muito tempo. O Ministro da Defesa Moshe Dayan, por exemplo, lançou ao vento, em certa ocasião, um período de cinquenta anos[20]. Agora estamos no quinquagésimo ano de ocupação.
A terceira decisão estava relacionada ao processo de paz. Como mencionado antes, a comunidade internacional esperava que Israel devolvesse os territórios ocupados em troca da paz. O governo israelense estava disposto a negociar com o Egito o futuro da Península do Sinai e com a Síria acerca das Colinas de Gold, mas não abdicaria da Cisjordânia, nem da Faixa de Gaza. Foi o que declarou, em uma breve coletiva de imprensa, em 1967, o primeiro-ministro da época, Levy Eshkol[21]. Mas seus colegas logo entenderam que esse tipo de declaração pública não era de muita ajuda, para dizer o mínimo. Dali em diante, essa posição estratégica nunca mais foi admitida explicitamente no âmbito público. O que temos são declarações inequívocas de alguns indivíduos que faziam parte da equipe sênior de oficiais encarregados da estratégia política para a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, sendo Dan Bavli o mais proeminente deles. Em retrospecto, Bavli relata que a resistência em abrir negociações, sobretudo quanto à Cisjordânia, demarcou a política israelense da época (e eu acrescentaria: e até os dias de hoje[22]). Bavli descreveu essa política como “uma soma de beligerância e falta de visão a longo prazo”, que substituiu qualquer busca por solução: “Os diversos governos israelenses falaram muito de paz, mas fizeram muito pouco para obtê-la[23]. O que os israelenses inventaram naquele momento foi o que Noam Chomsky chamou de “completa farsa[24]”. Eles entenderam que falar em paz não os impedia de executar na prática fatos irreversíveis que solapariam a própria ideia de paz.
Talvez o leitor se pergunte, e com razão, se à época não havia apoiadores da paz ou uma corrente sionista liberal que buscasse genuinamente um acordo. Sim, havia, e talvez ainda haja nos dias de hoje. Contudo, desde o início, esse movimento foi periférico e apoiado apenas por um pequeno setor do eleitorado. As decisões em Israel são tomadas por um núcleo de políticos, generais e estrategistas que estabelecem políticas à revelia do debate público. Além disso, ao menos em retrospecto, a única maneira de julgar qual seria a estratégia israelense não se dá pelo discurso dos estrategistas do Estado, mas por suas ações concretas. Por exemplo, as declarações políticas do governo unitário de 1967 podem ser diferentes daquelas dos governos trabalhistas que conduziram Israel até 1977, ou daquelas proferidas pelos governos do Likud que geriram Israel de modo intermitente até os dias de hoje (à exceção dos poucos anos em que o hoje extinto partido Kadima implementou os governos Sharon e Olmert na primeira década do século XXI). As ações de cada regime, contudo, foram as mesmas: todos permaneceram leais as três decisões estratégicas que se tornaram a catequese do dogma sionista em Israel após 1967.
A ação concreta mais crucial foi a construção de assentamentos judeus na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e o compromisso de expandi-los. De início, o governo alocou esses assentamentos em áreas palestinas de menor densidade demográfica na Cisjordânia (a partir de 1968) e em Gaza (a partir de 1969). No entanto, conforme a descrição arrepiante do brilhante livro de Idith Zertal e Akiva Eldar, "The Lords of the Land", os ministros e planejadores sucumbiram à pressão do movimento messiânico de colonos, Gush Emunim, e também instalaram judeus no âmago de comunidades palestinas[25].
Outra forma de julgar as reais intenções israelenses a partir de 1967 é analisar essas políticas do ponto de vista das vítimas palestinas. Após a ocupação, o novo governo confinou os palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza a um limbo impossível: não eram nem refugiados, nem cidadãos — eram, e ainda são, habitantes apátridas. Eram detentos, e em muitos aspectos ainda são, de uma imensa prisão onde não tinham direitos humanos ou civis e nenhum domínio de seu futuro. O mundo tolera essa situação porque Israel alega — e essa alegação só foi contestada em tempos recentes — que a situação é temporária e só persistirá até que surja um parceiro palestino para assinar a paz. Não é de surpreender que tal parceiro jamais tenha surgido. No momento em que escrevo este livro, Israel segue encarcerando uma terceira geração de palestinos através de vários meios e métodos e descrevendo essas mega-prisões como realidades temporárias que mudarão assim que Israel e Palestina negociarem a paz.
O que os palestinos podem fazer? A mensagem israelense é bem evidente: se cooperarem com a expropriação das terras, as severas restrições de movimento e a cruel burocracia de ocupação, poderão colher uns poucos benefícios. Que podem incluir o direito de trabalhar em Israel, de reivindicar certa autonomia e, desde 1993, até o direito de chamar algumas dessas regiões autônomas de Estado. Porém, se escolherem o caminho da resistência, como por vezes fizeram, sentirão todo o poder do exército israelense. O ativista palestino Mazin Qumsiyeh contabilizou catorze levantes que tentaram escapar dessa mega-prisão — todos respondidos de forma brutal e, no caso de Gaza, até mesmo genocida[26].
Assim, podemos ver que a tomada da Cisjordânia e da Faixa de Gaza representa a conclusão do trabalho iniciado em 1948. Naquela época, o movimento sionista tomou 80 por cento da Palestina — e a tomada foi concluida em 1967. O temor demográfico que assombrava Ben-Gurion, de um Grande Israel sem maioria judaica, foi cinicamente resolvido com o encarceramento da população dos territórios ocupados em uma prisão onde a cidadania inexiste. Não se trata apenas de uma descrição histórica; em muitos casos, essa ainda é a realidade hoje, em 2017.
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Dez mitos sobre Israel, Ilan Pappé MOC
Shlaim, Collusion Across the Jordan. ↩︎
Para mais sobre esse lobby e seu trabalho, ver o livro de Tom Segev 1967: Israel and the War That Transformed the Middle East, Nova York: Holt and Company, 2008, e Ilan Pappe, “The Junior Partner: Israel’s Role in the 1958 Crisis”, in: Roger Louis e Roger Owen (eds.), A Revolutionary Year: The Middle East in 1958, Londres e Nova York: I. B.
Tauris, 2002, pp. 245-74. ↩︎Ilan Pappe, “The Junior Partner”, op. cit.. ↩︎
Ibid. ↩︎
Ibid. ↩︎
Ben-Gurion Archive, Ben-Gurion Diary, 19 de agosto de 1958. ↩︎
Para uma versão muito honesta desses acontecimentos, ver David Shaham, Israel: The First Forty Years, Tel Aviv: Am Oved, 1991, pp. 239-47 (em hebraico). ↩︎
Ver Shlaim, A muralha de ferro. ↩︎
Ilan Pappe, “The Junior Partner”, op. cit. pp. 251-2. ↩︎
Ami Gluska, The Israeli Military and the Origins of the 1967 War: Govern-ment, Armed Forces and Defence Policy, 1963-1967, Londres e Nova York: Routledge, 2007, pp. 121-2. ↩︎
Discuti isso em detalhes em Ilan Pappe, “Revisiting 1967: The False Paradigm of Peace, Partition and Parity”, Settler Colonial Studies, 3:3-4, 2013, pp. 341-51. ↩︎
A sua maneira típica, Norman Finkelstein esmiuça a narrativa oficial de Israel conforme apresentada por um de seus melhores articulistas, Abba Eban, e a desmantela. Ver seu Imagem e realidade do conflito Israel-Palestina, Rio de Janeiro: Record, 2005. ↩︎
De uma entrevista concedida por Rabin, em 12 de maio de 1967, ao veiculo de noticias UPI, na qual também ameaçou derrubar o regime sírio. Ver Jeremy Bowen, Six Days: How the 1967 War Shaped the Middle East, Londres: Simon and Schuster UK, 2004, pp. 32-3. ↩︎
Ibid. ↩︎
Ver Avi Shlaim, “Walking the Tight Rope”, in: Avi Shlaim e Wm. Roger Louis (eds.), The 1967 Arab-Israeli War: Origins and Consequences, Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 114. ↩︎
Norman Finkelstein, Image and Reality, op. cit. pp. 125-35. ↩︎
Moshe Shemesh, Arab Politics, Palestinian Nationalism and the Six Day War, Brighton: Sussex Academic Press, 2008, p. 117. ↩︎
Israel State Archives, atas das reuniões de governo, 11 e 18 de junho, 1967. ↩︎
Valerie Zink, “A Quiet Transfer: The Judaization of Jerusalem”, Contemporary Arab Affairs, 2:1, 2009, pp. 122-33. ↩︎
Israel State Archives, atas das reuniões de governo, 26 de junho de 1967. ↩︎
Haaretz, 23 de junho de 1967. ↩︎
Dan Bavli, Dreams and Missed Opportunities, 1967-1973, Jerusalém: Carmel, 2002 (em hebraico). ↩︎
Ibid, p. 16. ↩︎
Noam Chomsky, “Chomsky: Why the Israel-Palestine ‘Negotiations’ are a Complete Farce”, Alicrnet.org, 2 de setembro de 2013. ↩︎
Idith Zertal e Akiva Eldar, The Lords of the Land: The War Over Israel's Settlements in the Occupied Territories, 1967-2007, Nova York: Nation Books, 2009. ↩︎
Mazin Qumsiyeh, Popular Resistance in Palestine: A History of Hope and Empowerment, Londres: Pluto Press, 2011. ↩︎