Made in America
author:: chicoary
source:: Made in America
clipped:: 2023-09-27
published:: março 28, 2018
A SOMBRA
( … )
‘Onde está – meu lar?’ Por ele pergunto e procuro e procurei, mas foi o que não encontrei. Ó eterno por-toda-parte, ó eterno em-parte-nenhuma, ó eterno – em-vão!”
Assim falou a sombra, e o rosto de Zaratustra se alongava às suas palavras. ”Tu és minha sombra!”, disse ele enfim, com tristeza.
Teu perigo não é pequeno, ó espírito livre e andarilho! Tiveste um mau dia! olha, que te vem um anoitecer ainda pior!
Os instáveis, tais como tu, acabam por achar venturosa até mesmo uma prisão. Viste alguma vez como dormem os criminosos aprisionados?
Dormem tranqüilamente, fruem de sua nova segurança.
Guarda-te de no fim ainda não te aprisionar uma crença estreita, uma dura, rigorosa ilusão! Pois a ti seduz e tenta agora tudo o que é estreito e firme.
Tu perdeste o alvo: ai de ti, como irás folgar e desafogar essa perda?
Com ele – perdeste também o caminho!
Tu, pobre errante, pobre exaltado, tu cansada borboleta! queres ter esta noite uma trégua e um lar? Sobe para minha caverna!”‘
( … )
A série The Sopranos sempre aparecia em lampejos no meu radar de cinéfilo. Minha repulsa inicial pela moda das séries me afastou desta obra magistral por algum tempo. Séries aparentemente sabiam a novelas e seus esquemas simplistas e maniqueistas para enganar as massas. Fui me desvirginizando ao poucos ao começar pela Narcos. Ainda uso luvas de pelica para decidir sobre as séries que devo assistir. Sei, agora por experiência própria, que não sou imune ao mecanismo viciante que é posto, propositadamente, pelos criadores da séries para alavancá-las comercialmente. Isto não impede que a excelência artística não possa se infiltrar em algumas delas. The Sopranos foi uma grata surpresa a tal ponto que o anzol episódico foi mordido com vontade pela degustação prazerosa da isca.
Achei uma sacada genial tratar a questāo da máfia como um caso psicanalítico, inspirada no “Máfia no divã“, que ainda não vi, que é citada em um dos episódios. Comentaristas alegam que o lado “humano” do “capo dos capos” não seria percebido sem as sessões de psicanálise. Um Tony Soprano paternal com os capos e soldados mas duro com os erros, corrigidos com a morte de alguns deles conforme o protocolo da máfia, emerge do conceito ampliado de família da “cosa nostra”. Um universo de baixa cultura, que tangencia a cultura pelos do topo mas ao mesmo tempo a repudia no episódio em que aparece um italiano diplomata blasé, reforça a banalidade do mal feita por “gente como a gente”. A ideologia católica da redenção pela confissão e comunhão permeia a forma como os acordos e sanções entre os mafiosos acontecem. Uma recorrente necessidade de conciliação onde pedidos de desculpa são brandidos em todas as direções recendem a confessionário. A morte não se escusa de aparecer, mesmo assim. Afinal, no contexto teológico cristão e católico, esta vida é apenas uma fase e a morte apenas uma passagem.
Um dos episódios que me marcou foi onde o padre é desancado pela esposa do Don. O padre, com seu sexualismo assintótico e hipocrisia, é denunciado pela “Dona” magistralmente no episódio I Dream of Jeannie Cusamano:
Durante toda série o ceticismo do Don é brandido. Ele não acredita em muita coisa que a “famiglia” cultua supersticiosamente. E o valor principal é a abstração da familia patriarcal como estrutura mas comandada pelo útero. Ao ser rejeitado pela Dona Tony se recusa a sair da casa, seu útero.
O episódio onde aparece San Gennaro coberto de notas de dólares, sem seu chapéu de ouro, uma alegoria à prosperidade, pode parecer realçar a superstição contra a religiosidade. Mas San Gennaro também se liga à tradição do deus romano Janus, o dos começos e das mudanças de rumo. Uma mudança de rumo que é esperada durante toda a série.
O episódio The Second Coming encerra uma interessante avaliação de Tony Soprano sobre a ilusão eufórica e insights causados pela imersão do cérebro, este mestre prestidigitador em nosso crânio, em substâncias alucinógenas. No caso o Peyote:
— Quando eu estive em Las Vegas, eu tomei peiote. Por curiosidade,
sei lá.— Você estava em busca de algo?
— Bom, eu vi umas coisas. Não… Essas coisas, tipo alucinações,
— Tipo filme do Roger Corman.
— Foi meio decepcionante, não teve isso.
— E o que que havia?
— É meio difícil de descrever. Tipo, você já fez isso, né? Ácido, essas coisas.
— Não.
— O que eu posso dizer é que… Eu vi, com absoluta certeza, Que isto aqui… Tudo que a gente vê e sente… Não é tudo.
— O que mais existe?
— Alguma coisa a mais. Mas eu não vou além disso. Eu não sei, porra.
— Universos alternativos?
— Vai dar uma de piadista agora?
— Não estou sendo.
— Talvez. Isso vai soar idiota… Mas eu vi em certo ponto que
nossas mães são… São motoristas de ônibus. Elas são… Não, elas não são o ônibus. Tipo, elas são o veículo que nos traz até aqui. Elas nos largam e seguem seu caminho. Continuam a jornada delas. E o problema é que a gente continua
tentando subir de volta no ônibus… Ao invés de deixar
ele ir.— É uma boa percepção.
— Jesus, não finja tanta surpresa. Sabe… Você pensa essas coisas, que quase dá pra pegar com a mão. E aí… Pfft.
A sensação ao terminar a série é de ter escapado de um “buraco negro”. Buracos negros são uma denominação metafórica usada pelos físicos para expressar o fato científico consequência da teoria da relatividade geral. Nem a luz pode escapar de uma gravidade colossal no entorno de um buraco negro, por isso negro. Hawking teorizou que buracos negros em rodopio poderiam arremessar a luz apesar da enorme atração gravitacional. O último episódio do The Sopranos nos arremessa de novo, qual um rodopiante buraco negro, à nossa vidinha tediosa que antes regozijou vicariamente, durante a série, com um vida ficcional vibrante, embora com cheiro de morte. A máfia como crime simplesmente foi usada com metáfora da vida e pontifica sobre a sua imperfeição e falta de sentido. Nunca, talvez, uma série foi ou será mais filosófica do que esta.
Nota:
Pesquisando sobre San Genaro, na Internet, descobri que era padroeiro da cidade de Ubá. Onde morei pelo menos duas vezes. Lembrei da Praça São Januário onde havia um cruzeiro de madeira no meio dela.
De um lado ficava a igreja e do outro o Colégio Sacre Coeur.
Na época não havia a estátua do Ary Barroso. O crucifixo de madeira estava carcomido e ameaçava cair sobre os transeuntes. A praça era concorrida para o footing. Quando o cruzeiro foi derrubado vários morcegos, que nele moravam e que não fugiram, morreram no chão da praça.
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