Desobediência civil
author:: chicoary
source:: Desobediência civil
clipped:: 2023-10-20
published:: 6 de abril de 2018
Todos os homens reconhecem o direito de revolução; isto é, o direito de recusar obediência ao governo, e de resistir a ele, quando sua tirania ou sua ineficiência são grandes e intoleráveis. Mas quase todos dizem que não é esse o caso agora.
Henry David Thoreau. “A desobediência civil.”
Alguém disse que o cotidiano é uma máquina que absorve as tentativas de fugir da mesmice e do conformismo. O cotidiano, que é a prática do conformismo no esquecimento, é a imposição da injustiça pela dependência que todos tem do modo de vida, de ganhar a vida, de sobreviver, a que nos obriga o sistema de opressão. Nas greves o poder procura restringir os recursos à disposição da revolta. Os salários são retidos, mesmo que as horas já tenham sido trabalhadas e o recebimento já seja um direito, já que o trabalho é pago vencido.
Agora mesmo vemos o corte de água do sindicato dos metalúrgicos onde está Lula numa tentativa de quebrar a resistência ao arbítrio. Com prazo até 17h para se entregar em Curitiba declara que não vai se apresentar. O poder judiciário deve levá-lo debaixo de vara, como é dito na linguagem truculenta dos togados, agora usando varas de fascio.
A polícia federal diz que vai esperar as coisas se acalmarem. Conta com a premência do cotidiano para a desmobilização. As pessoas tem que trabalhar, voltar para as senzalas, cumprir o seu calvário cotidiano sem esperanças. Mas acontece que dois atores poderosos, que já vivem diuturnamente fora desse cotidiano normalizado e naturalizado, estão postos e dispostos a defender o ex-presidente contra a prisão: os sem teto e os sem terra. Eles não tem um “cotidiano” já que lhes foi negado na radicalidade de não ter onde morar ou onde plantar. Sua dedicação, como se fossem uma guarda pretoriana, é exemplar.
Uma questão interessante é posta por Derrida, no seu ‘Força de lei’:
Como distinguir entre a força de lei de um poder legítimo e a violência pretensamente originária que precisou instaurar essa autoridade, e que não podia ela mesma autorizar-se por nenhuma Iegitimidade anterior, de tal forma que eIa não é, naquele momento inicial, nem legal nem ilegal, outros diriam apressadamente nem justa nem injusta?
Derrida
A violência de um poder legítimo para impor o cumprimento da lei é também tão legítima quanto o processo de instauração da legalidade como expressão de justiça buscada pela sociedade e apoiada por ela.
Nenhum indivíduo ou grupo dentro da sociedade que instaurou esse acordo pode se considerar imune à força de lei, que não precisa ser violenta quando outras coerções são eficazes. A violência é o último recurso a ser usado quando também a violência for invocada para se subtrair ao cumprimento da lei.
O pressuposto é que a sociedade sairia prejudicada de imediato e potencialmente pelo não cumprimento da lei. Os indivíduos e grupos que ferem a lei são sempre ilegítimos diante da legitimidade da lei manejada por um poder legítimo.
Mas diante de um poder ilegítimo voltamos ao processo originário da instauração da legalidade. O indivíduos e grupos, postos na ilegalidade por um poder ilegítimo que usa a violência e que arbitra o monopólio da violência para si, estão agora em situação de igualdade onde todos são ilegitimados até que, caso a caso ou por uma ruptura mais ampla se restabeleça uma nova legalidade que se aproxime melhor do que é justiça. A legalidade será aquela dos vencedores, é claro, e pode prescindir ou não de que eles tenham vencido num processo legítimo e legitimado, já que estamos “naquele momento inicial, nem legal nem ilegal” de que fala Derrida.
Como é o poder ilegítimo que maneja a imposição da legalidade, a que ele não teve direito por ser ilegítimo, em situações de luta política, como tem sido o caso dos movimentos de resistência, somente a correlação de forças é que pode decidir o resultado. Tanto o resultado imediato quanto os de longo prazo, desde que se consiga a manutenção da pressão.
A sociedade pode titubear ao ver a situação legal ser tensionada e ao sofrer pressões para criminalizar os movimentos políticos mas, ao poucos, vai percebendo as diferenças entre uma polícia que a protege em momentos de insegurança perante a criminalidade e uma polícia que claramente age para conter e calar reivindicações legítimas. E começa a perceber como as castas, que se alojaram ilegitimamente no poder, agora mantém a sociedade refém de uma legalidade instrumentada politicamente somente para fins repressivos das manifestações não alinhadas com os seu desígnios.
Pascal cita Montaigne sem nomeá-lo, quando escreve:
[…I que a essência da justiça é a autoridade do legislador, outro, a comodidade do soberano, outro, o costume presente; e é o mais seguro: nada, segundo somente a razão, é justo por si; tudo se move com o tempo. O costume faz toda a equidade, pela simples razão de ser recebida; é o fundamento místico da autoridade. Quem a remete ao seu princípio a aniquila.
Montaigne falava de fato, são suas palavras, de um “fundamento místico” da autoridade das leis:
Ora, as leis se mantém em crédito, não porque elas são justas, mas porque são leis. É o fundamento místico de sua autoridade, elas não tem outro […]. Quem a elas obedece porque são justas não lhes obedece justamente pelo que deve.
Visivelmente, Montaigne distingue aqui leis, isto é, o direito, da justiça. A justiça do direito, a justiça como direito não é a justiça. As leis não são justas como leis. Não obedecemos a elas porque são justas, mas porque têm autoridade. A palavra “crédito” porta toda a carga da proposição e justifica a alusão ao caráter “místico” da autoridade. A autoridade das leis repousa apenas no crédito que lhe concedemos. Nelas acreditamos, eis seu único fundamento. Esse ato de fé não é um fundamento ontológico ou racional. E ainda resta pensar no que significa crer.
Derrida, no seu ‘Força de lei’
Argumenta-se a vezes que as eleições de 2018 legitimarão o golpe caso a direita se eleja. Como uma direita eleita não desfará os desmandos de um golpe ilegítimo continuaremos no mesmo. E mesmo uma esquerda que não desfaça completamente a mudanças ilegítimas que foram implementadas também legitimaria o golpe. A única solução restante razoável é a tabula rasa pós revogação da perda de direitos, com uma ampla participação popular, para voltarmos, inicialmente, ao estágio pré-golpe. E em sequência a instauração de uma nova forma de fazer política com participação popular contínua.
[Atualizaçāo] Lula e o PT resolvem que ele deve se entregar hoje, 7 de abril, às 16:00. End of story? Nāo sabemos. Os manifestantes não deixaram Lula sair do sindicato. Alegando novo cenário envolvendo novas manobras jurídicas do Moro Gleisi Hoffman argumenta com os presentes no sindicato sobre a conveniência de continuar impedindo Lula de se entregar. Diz que uma prisāo preventiva possível vai impedir um pedido de habeas corpus ([Atualização] O que é contestado por alguns como uma mentira para enganar os militantes e permitir que Lula se entregasse). A militância parece nāo compreender ou concordar. Lula, entāo, vai a pé se entregar entrando num carro da polícia federal que o esperava do outro lado da rua.
Uma coisa estranha foi a Gleisi, que garantiu em vídeo que Lula não se entregaria, priorizar a manobra para evitar a prisão preventiva. Ficou parecendo que ficaram aliviados em ter este pretexto para evitar a radicalização das massas, quando não sabem mais como lidar com ela para alavancar um avanço com apoio geral da população que poderia se juntar aos militantes. Um líder dos sem terra inclusive recebeu a palavra da Gleisi como num pedido de socorro. Ele então continuou argumentando e “ameaçou” os próprios camaradas com a chegada da tropa de choque (que, talvez, parecia ser mais mais difícil de acontecer com a troca do governador) e ao mesmo tempo disse que tinham avisado aos repressores para não tocar nos militantes da sua base dando a entender que comandariam uma reação não-pacífica.
8/4/2018 – O professor de comunicação Wilson Roberto Vieira Ferreira escreve a análise Na prisão de Lula mais uma vez a esquerda perde a guerra semiótica. Alguns trechos:
[…]
A resposta de Lula e do PT foi rápida e promissora: se encastelar no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, sugerindo a estratégia de empate e desobediência civil. Para cobrar um alto preço simbólico pela rendição. Mas acabou cedendo à indefectível narrativa da “luta e resistência” e abandonou o campo de batalha semiótico, em rede nacional.
[…]
E do outro lado, mais uma vez, a esquerda perdia a batalha simbólica por WO. Depois de um começo promissor (a perspectiva de seguir no trilho narrativo da desobediência civil), voltou para o familiar e confortável campo da “luta e resistência”.
Esse humilde blogueiro [Wilson Ferreira] chegou a se entusiasmar pelo inteligente ardil de Lula e do PT: se encastelar no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, em uma rua sem saída, berço do partido e início da sua biografia política. Cercado de antigos amigos dos tempos das grandes greves do ABC na ditadura militar.
Tudo levava a crer que Lula seguia a estratégia do empate e da desobediência civil: vender a sua inevitável prisão a custo simbólico muito alto: toda a imprensa mundial testemunhando a invasão do sindicato por forças policiais. Enquanto nas ruas do entorno, uma conflagração entre carros de choque e a fumaça das bombas de gás e efeito moral.
O que lembraria as imagens do golpe militar no Chile em 1973, com o presidente Allende resistindo aos bombardeios dos canhões do Exército e da Força Aérea chilena.
Era tudo que Judiciário, PF e grande mídia não queriam e evitavam a todo custo. Chegando ao final às ameaças de transformar tudo em prisão preventiva sem direito a um possível futuro habeas corpus perpetrado pelo incrível Exército Brancaleone de advogados de defesa de Lula – como lutar por dispositivos legais em um Estado de Exceção?
Mas o “histórico” discurso de Lula no caminhão de som em frente ao sindicato, inflamado e atacando a grande mídia, na verdade foi ao mesmo tempo um discurso de rendição e uma tentativa de elevar o moral da tropa. Comparou as negociações das greves dos metalúrgicos de 1979 e a sua aceitação pela “melhor opção” oferecida pelos patrões na época (indo contra a opinião contrária da “peãozada”) com aquele momento em que aceitaria a rendição.
O que fez serem ouvidas vaias no meio da militância. Como testemunhou o jornalista e fotógrafo Bruno Torturra, grupos formados espontaneamente começaram a trancar os portões do sindicato para impedir a saída do carro que conduziria Lula à rendição. Como foi o caso o líder comunitário de Maceió Rogério Diaz, “o primeiro a não aceitar a rendição”, segundo Torturra. E que passou a colocar pedaços de tábuas para criar bloqueios nos portões – veja vídeo abaixo.
Ao mesmo tempo, seguranças de Lula, chorando, pediam para que as pessoas deixassem o carro passar.
Elevar o moral da tropa na rendição
Em termos diretos, enquanto as lideranças procuravam elevar o moral da militância com o indefectível narrativa da “luta e resistência” (com muitas músicas alusivas à resistência na época da ditadura militar), nas ruas do entorno as pessoas queriam era vender caro a derrota.
No mesmo momento em que o complexo Judiciário, PF e grande mídia não media esforços no metódico planejamento simbólico e semiótico da ação (não é para amadores mesmo: o dia original da prisão de Lula foi marcado por Moro para o dia do falecimento de José Bonifácio, conhecido como o “Patriarca da Independência” nos livros de História), o PT e as esquerdas negociavam a derrota por WO.
Em síntese: enquanto as esquerdas vivem a saudosa recorrência do discurso da “luta e resistência”, a direita luta no sofisticado campo da Guerra Híbrida e bombas semióticas.
De tudo ficou ao final o sabor amargo em uma atmosfera retro e saudosa das esquerdas dos anos 1970-80. E uma boa notícia para as teses de Umberto Eco: o Brasil ofereceria as melhores evidências para a “Nova Idade Média” do pesquisador italiano.
Fazendo um parênteses. Marx ‘percebe que a prática, os conflitos, a luta entre os homens / classes é que gera as idéias e não o contrário.’ (Ver o artigo Karl Marx e a crítica à conciência moderna). Ou seja, com Maquiavel, que a ação revela oportunidades que a inação desconhece. A ação é que cria a consciência e não o contrário. Paralisar o ímpeto correto da massa se revela uma manipulação da massa impulsionada pelo medo da mesma, que quer forçar a ‘vanguarda’ a se tornar autêntica, e pela inferiorização da mesma, tida como encarnação dos instintos contra a espiritualizada e não-ignorante liderança, que se considera mais enfronhada com o poder e as instituições que diz combater quando, na verdade, quer nelas se aconchegar pois está mais habituada, desde o berço, a elas e não sabe lidar com a rudeza e clareza dos injustiçados. Que considera a turba um animal bravio que não pode domar. Que não sabe domar a não ser para a subjugação. Que não sabe orientar essa fantástica vontade de potência em seu favor e, por isso, a teme pavorosamente.
11/4/2018 – Soube, através de um vídeo do Romulus, que os que estão no acampamento do MST em Curitiba gritam ‘Bom dia’ todas as manhãs para que Lula ouça de dentro da sua tranca. Este exemplo de resistência, por estarem lá, e de solidariedade e confortamento, e o advogado disse que ele ouve o ‘Bom dia’, torna os participantes do MST e MTST ímpares no cenário atual. Não precisaríamos de nada disso se Lula tivesse se asilado, embora também ficasse com a mobilidade restrita poderia se comunicar mais. Agora há rumores de que vão confiná-lo num quartel militar.
22/4/2018 – Mensagens bem explícitas foram disparadas na imprensa sugerindo que se Lula parar as críticas ao Judiciário o mesmo poderia ser mais condescendente com ele. Ceder à esta chantagem poderá ser o segundo erro de Lula após o de se entregar.
29/4/2018 – Estamos às vésperas do Primeiro de Maio. Lula está ainda preso na Policia Federal. Praticamente incomunicável e sem assistência médica, resultado de manobras de uma juiza carcereira. O acampamento de vigília foi obrigado a ir para local afastado do original. E, recentemente, atacado a tiros que levaram a internamento hospitalar, em estado grave, de pelo menos uma pessoa que estava no acampamento.
30/4/2018 – Jeferson, atingido no pescoço e internado em estado grave, sai da UTI mas como sequela pode nunca mais conseguir falar.
3/5/2018 – Sincronicidade? Em pleno Primeiro de Maio prédio com sem tetos implode por efeito das chamas em São Paulo. Num desprezo obsceno pela tragédia uma jornalista pergunta sobre a taxas pagas pelos incendiados. A um bombeiro. Recebe como resposta um tapa de luva: “estou aqui para salvar vidas”