As virtudes da hostilidade

author:: chicoary
source:: As virtudes da hostilidade
clipped:: 2023-01-26
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Para produzir essa tensão [Ver Dançar sobre abismos], precisamos de inimigos. Mas se eles são necessários para nos despertar, é preciso ter o cuidado de não os vencer, de não os destruir, caso contrário não os teremos mais. Nem pense, então, em negar seus inimigos nem em os odiar. Nietzsche dá assim um sentido novo ao mandamento cristão de amar seus inimigos. Esse é um dos exemplos da espiritualização das paixões, mesmo as mais violentas.

“A espiritualização da sensualidade tem por nome Amor: é um grande triunfo sobre o cristianismo. Um outro triunfo é nossa espiritualização da hostilidade. Ela consiste em compreender profundamente o valor que possui o fato de ter inimigos: em suma, de agir e de raciocinar exatamente ao inverso da maneira como se agiu e raciocinou outrora. A Igreja quis, desde sempre, a aniquilação de seus inimigos, nós, os imoralistas e anticristãos, vemos nossa vantagem no fato de que a Igreja existe. […] Nossa atitude não é diferente em relação ao ‘inimigo interior’: aí também espiritualizamos a hostilidade, aí também apreendemos seu valor. Só se é fecundo a esse preço: ser rico em oposições, só se permanece jovem sob a preposição de que a alma não chafurda, não deseja a paz…”
(O crepúsculo dos ídolos. “A moral como contranatureza,!”, 3)

Quando a Igreja nos chama a amarmos os nossos inimigos (em vez de persegui-los como ela o fez na realidade), ela quer que salvemos nossos inimigos pelo amor, isto é, que os convertamos. Nós amamos nossos inimigos para que eles cessem de ser inimigos — pouco importa que sejam eles mesmos que desapareçam ou somente a sua hostilidade. Nietzsche, todavia, pede o contrário: amar os próprios inimigos significa ter gratidão pela sua hostilidade mesma, ser grato pelo fato de que algo nos resiste, nos provoca e nos questiona. Não se deve, portanto, em caso algum odiá-los, querer suprimi-los ou mesmo enfraquecê-los.

As hostilidades, as discriminações, os assédios que encontramos devem, ao invés, ser interpretados como uma chance. Essas são ocasiões para se aperfeiçoar os próprios instintos, para inventar novas defesas, para mostrar a própria superioridade. Para muitos músicos de jazz, o racismo contra os negros americanos não foi somente um sofrimento. Foi também um incentivo a inventar uma música mais potente, mais sofisticada, mais profunda do que aquela de que eram capazes os seus perseguidores, os quais logo se tornariam imitadores grosseiros e diletantes. A homofobia tem inspirado alguns dos maiores escritores, obrigando-os não somente a dissimular sua homossexualidade em uma análise menos convencional da sexualidade humana, como o fez Proust, mas também a desfrutar de seu status de pária para arriscar uma crítica mais radical da sociedade, como o fizeram Genet ou Pasolini. Se é legítimo combater todas as formas de discriminação em um plano social, é preciso, ao mesmo tempo, saber inspirar-se nos obstáculos que elas fazem nascer na vida individual, em vez de congelar no ressentimento e no rancor.

Devemos então aprender a escolher nossos inimigos e respeitar uma ética da guerra justa e produtiva.

“Minha prática da guerra se enuncia em quatro princípios: primeiramente, ataco apenas causas vitoriosas; — se necessário, espero que elas o sejam. Em segundo lugar: só ataco causas perante as quais estarei desprovido de aliados, onde avanço  só, — onde sou o único a me comprometer… Em terceiro lugar: nunca ataco pessoas, — só me sirvo da pessoa como uma lupa poderosa com a qual conseguimos tornar visível uma situação desesperada que concerne a todos, mas sorrateira e difícil de perceber. […] Atacar é, de minha parte, uma marca de benevolência, caso necessário, de gratidão. Eu presto homenagem, distingo associando meu nome a uma coisa, a uma pessoa: se a favor ou contra, pouco me importa neste caso” (Ecce homo. “Por que eu sou tão sábio”, 7).

O objetivo da guerra nietzscheana não é, portanto, vencer. É estimular nossas próprias forças, assim como aquelas dos nossos inimigos. O mesmo acontece com aqueles do interior. Não é preciso pensar em suprimir as próprias paixões violentas ou mórbidas, angústias e aspirações irrealistas, pois é precisamente no combate com esses demônios que nos construímos. É no confronto com o aspecto sombrio da existência, no cara a cara com a morte, o sofrimento, a estupidez e a maldade, na luta com a própria fraqueza e preguiça que o homem é forçado a descer ao mais profundo de si mesmo e dar o que ele tem de melhor.


O trecho acima é uma citação de texto no capítulo Amar seus inimigos do livro Afirmar-se com Nietzsche, de Balthasar Thomass.


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