A última noite de Deus
author:: chicoary
source:: A última noite de Deus
clipped:: 2023-09-18
published:: julho 13, 2019
Entre 1978 e 2006 devo ter lido o livro do Castillo. Não sei direito. Provavelmente li nos anos 80. Este é um dos livros que me atraíram pela capa ou pelo título. No caso deste o título é mais chamativo que a capa.
Gostei da história e recomendei a leitura a alguém. Acabei emprestando o livro. E como quase invariavelmente tem acontecido nesses casos o livro não foi devolvido. Formei uma teoria sobre o que ocorre nesses casos. Eu me entusiasmo pelo livro mas o livro acaba não impressionando a quem eu recomendo. Seja por falta de tempo ou porque a pessoa se sentiu constrangida e acabou pegando o livro emprestado sem muita vontade de lê-lo. A vezes acho que perdiam o livro por terem emprestado a alguém, numa espécie de terceirização da leitura que não queriam fazer. “Ei, veja se gosta deste livro que me emprestaram mas que agora não estou com tempo para ler. Depois me diga se gostou.” E acho que em alguns casos a pessoa (ou a quem ela emprestou) gostou tanto que não devolveu. São teorias. Mas serviram para eu ser mais cauteloso nas minhas entusiásticas recomendações de leitura e também para evitar emprestar livros de que gosto com o risco de perdê-los.
Este livro do Castillo foi um dos que perdi. Outros foram Lógica Formal/LógicaDialética (Lefebvre) e Marxismo, ideologia profana (Genro). Acabei recuperando os livros na Internet via Estante Virtual e sites que publicaram alguma obras. O livro As cruzadas (Zoé Oldemburg) eu quase perdi recuperando depois de vários anos porque sabia onde estava. A última noite de Deus pedi na Estante Virtual.
O texto a seguir contém leve spoiler.
Quando li lá atrás o livro do Michel Del Castillo fiquei impressionado com a frieza e insensibilidade do personagem Avelino Pared. Via-o como um torturador psicológico implacável que aniquilava o moral das suas vítimas em nome de uma moral da ordem velada pela polícia num estado policial e despótico absoluto. Mas da leitura do passado só tinha ficado um tremendo desconforto com o tema do livro. Os detalhes já tinham escapado ou sido soterrados por camadas de esquecimento da memória. Talvez defensivamente para proteção inconsciente contra a deprimente e brilhante, na minha opinião na época, exposição do autor sobre o tema da repressão política. Na minha releitura recente — acabei ontem de reler — não fiquei tão oprimido pelo que li. Talvez o estágio de maturidade trazido pelos anos seja a razão de não me impressionar tanto.
A história, em linhas gerais, se desenvolve de um caso de crueldade por parte do inspetor Laredo na sua infância arruinando um adulto gratuitamente. O caso é um leitmotiv do livro que tece um linha de identificação e aproximação psicológica entre Pared e Laredo.
Pared rejeita o Cristo em favor do Pai. Considera o Cristo piegas e Deus o instituto, implacável e indiferente ao sofrimento, da ordem. O olho que tudo vê. Pared emula esta ordem acumulando um arquivo que engloba todos os habitantes da cidade de Huesca, para onde foi transferido Laredo por sua intervenção. Podemos traçar um paralelo, através de algumas indicações no livro, entre Deus e o Filho com a Direita e a Esquerda. A Direita Franquista, no caso. Implacável e indiferente. E uma Esquerda com remorsos pela matança. Parte de sua pieguice. E trazendo para si a responsabilidade. Neste tópico o livro é um tanto raso. Há também uma relação de causa e efeito dos traumas de infância moldando as personalidades policiais de Pared e Laredo. O contexto da barbárie reacionária é bastante escamoteado em favor de realçar os males do sonho utópico de uma esquerda que tentou ser revolucionária mas que acaba se refugiando, ao fim e ao cabo, na religião e seus preceitos mais atrasados. Abandonando o élan coletivo em favor de uma pseudo redenção individualista.
O ideal do “cidadão de bem” de Pared é algo como sua gorda mulher cândida, medrosa, obediente e subserviente. Uma massa que a polícia não pode atuar mais por já ter se esgotado toda a possibilidade de rebeldia. Restando a franja marginal e subversiva para justificar a polícia que não funcionaria se a massa adquirisse o élan do revoltosos.
No final Laredo, foragido após matar Pared, vai realizar o ideal de uma vida amorfa com sua nova amante numa cidadezinha inexpressiva e vida igual.
Cito abaixo um trecho que reputo interessante e premonitório em relação aos nossos tempos bicudos.
Pared leva Laredo ao sótão do departamento de polícia onde conserva um arquivo recheados de pastas com folhas coloridas para cada tema envolvendo a pessoa fichada da província:
Enfim, a vermelha [cor da folha], a política e a social, ou seja, os sonhos absurdos e as teorias embaçadas que levaram tantos à morte. Quatro cores para clarear um destino. Tudo aquilo que chamam, tão pomposamente o Mistério de um Homem, se encontra aqui dentro destes papéis.
É verdade, os métodos são artesanais, até mesmo rudes. Se aproxima o dia que uma máquina brilhante conterá em si, não toda um província, mas toda uma nação, um continente, ou até mesmo o mundo. Então a polícia terá, enfim, cumprido a sua missão: finalmente ela se transformará neste OLHO invisível que seguirá as pessoas por todos os lugares.